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Nem toda denominação religiosa é Igreja

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O homem é um ser religioso por natureza. Desde os tempos remotos da história, quando viviam em tribos nômades e nas cavernas, sem uma comunicação refinada e um repertório qualificável, nossos ancestrais já intuíam que havia uma força que operava para além deles e dos lugares por onde passavam. Outras culturas e povos, como os indígenas, cultuavam tudo o que estava para além da compreensão deles: o sol, a lua, as estrelas, as estações do ano, a natureza. Essa dimensão religiosa é tão importante quanto as demais outras. Por isso, deve ser contemplada e percebida com atenção.

Segundo dados da Receita Federal, publicados pelo jornal O GLOBO, na edição desse domingo[1], desde 2010, uma nova denominação religiosa é registrada a cada hora. 67.951 entidades se registraram na Receita Federal sob a rubrica de “organizações religiosas ou filosóficas”, uma média de 25 por dia. As principais causas, segundo a reportagem, são três: situação econômica do país, neopentecostalismo e a falta de burocracia para se abrir uma nova igreja.

De fato, a questão econômica é algo que mexe com o psicológico, o emocional e as crenças de qualquer pessoa, não importa sua condição social ou grau de instrução. O acirramento da crise política e financeira em nosso país, que já atingiu o seu ápice, além da insegurança que esse cenário provoca em grande parte da população, faz com que as pessoas busquem uma “tábua de salvação”. E não é de se estranhar que a religião se apresente como esse porto seguro para onde muitos se voltam. O pai de família desempregado, o empresário falido, o profissional liberal sem demandas, o jovem com receio do futuro e o idoso que sofre a derrocada de suas economias de anos. A religião, travestida pelo transcendente, aponta uma saída: a intervenção poderosa de um de deus na desordem e no caos instaurados.

Nesse sentido, o apelo neopentecostal encontra o seu maior campo de atuação. Sob um discurso eminentemente emocional, numa linguagem simples, direta e apelativa, os “líderes” evocam sobre os “fiéis” o poder miraculoso de Deus, a fim de que Ele intervenha nos principais campos da vida humana: financeira, afetiva, profissional e familiar. Marcam, inclusive, dia e hora para a obtenção do milagre que necessitam. A chamada “Teologia da Prosperidade” ganha relevo nessa dinâmica do “toma-la-da-cá”. A pregação é permeada de artifícios motivacionais e reduz-se tudo, ou quase tudo, ao campo espiritual. As contingências históricas, os desdobramentos éticos e a interdependência dos Estados, na chamada “aldeia global”, são pouco levados em conta. Nesses grupos ou denominações religiosas o que menos importa é a solidez da doutrina. Subverte-se o texto bíblico ao bel prazer “do freguês” e faz-se uma religião light ou de “supermaché”: não é necessário acolher tudo o que a igreja ou a bíblia diz, apenas aquilo que lhe convém. O fiel é visto como um cliente que deve ser tratado a “pão de ló”, afinal de contas, será ele que irá pagar a conta [da igreja] no fim do mês. Nos discursos há forte presença de teorias da psicologia, do marketing e da publicidade.

Para abrir uma nova denominação é simples. Primeiro, obtém-se o registro em cartório, com a ata de fundação, o estatuto social e a composição da diretoria; depois, os dados são apresentados à Receita, para que o órgão conceda o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), item obrigatório para o funcionamento legal das instituições. Com o CNPJ em mãos, basta procurar a prefeitura e o governo estadual para solicitar, caso necessário, o alvará de funcionamento e garantir também a imunidade tributária. E elas não surgem do nada, nem de pessoas desconhecidas. São forjadas dentro das igrejas tradicionais ou históricas. Primeiro, desponta-se um líder, alguém carismático, com fala convincente e trânsito livre com os demais fiéis. Forma-se um grupo, um movimento, uma expressão religiosa. Começam as reuniões com adornos da igreja que frequentam. Assim, não levantam suspeitas. Criam-se regimentos, estatutos próprios, e elementos “estranhos” à tradição daquela igreja são inseridos. Se for uma igreja cristã católica, ela sofrerá influência de grupos externos, tais como maçonaria, espiritismo e protestantismo, por exemplo.

Logo, a doutrina sofrerá grandes abalos. O primeiro empecilho será a presença das autoridades legítimas da Igreja. Elas representam a continuidade e a manutenção da Doutrina. Descarta-se, portanto, a orientação e a presença assídua delas junto a esses grupos. A doutrina católica, mais genuína e em consonância com o Magistério, será relegada a segundo plano. Os líderes ou coordenadores serão avessos a ela. Despreparados, ignorantes em matéria de Tradição, estarão à frente de grupos que se deixarão levar por expressões adquiridas fora do contexto da vivência eclesial. O título de “católicos” será uma mera formalidade. Já não são mais participantes da “Comunidade de Fé”: não interagem com os demais grupos ou movimentos e não se reportam mais com a devida observância àqueles que foram destinados como legítimos Pastores. Os líderes assumirão essa função. A separação será uma questão de tempo. Se não de todo, de alguns membros que irão formar outro grupo, outra denominação ou seguir aquele líder a quem estimam tanto.

A fidelidade dos membros desses grupos à Igreja a que pertencem é questionável. Toleram-na enquanto puderem usufruir de sua estrutura ou credibilidade. Dizem-se pertencentes até que possam se promover social e, inclusive, politicamente. Desses grupos, ainda, surgem políticos e pessoas com status social adquiridos nos anos de pertencimento e “militância” religiosa.

Por fim, a força do neopentecostalismo incide diretamente sobre as comunidades tradicionais. Autoproclamados “espirituais”, muitas correntes se apartam da igreja como instituição e se apresentam como modelo de seguimento e fidelidade ao Evangelho. Graças ao modelo existente, a inspiração “evangélica” ou “protestante” ganhou relevos inauditos na Liturgia Católica. A influência está no canto e no modo de rezar. Canta-se não mais a Teologia ou a Doutrina da Igreja, mas a “música bonita”, a “canção que toca fundo na alma”, aquele hino que “diz das dores e das emoções feridas” do fiel. A música deixa de ser comunitária para se tornar “pessoal” ou “intimista”. Não se canta a Liturgia, mas na Liturgia. Faz-se show do que é Mistério e Silêncio. Despreza-se o “nós” da comunidade para salientar o “eu”. A formação sólida e condizente com o Magistério é aos moldes da “religião ligth”: apenas o que interessa ou agrada ao fiel. Muitos, com um discurso blasfemo contra o Espírito Santo, negligenciam a formação e o estudo, pois o “Espírito falará ou agirá na hora”.

Claro que há membros e membros, pessoas e pessoas. Em muitos desses grupos ou movimentos, há gente séria, comprometida, com boa índole e dispostas a fazerem a diferença. São, muitas vezes, pedra de tropeço para aqueles que têm outras pretensões e aspiram uma ascensão para além do grupo a que pertencem. Mas a grande maioria sequer faz esse tipo de reflexão ou sabe dos influxos advindos de outras correntes de pensamento, filosofia ou religiosidade. Também nesse viés de “espiritualismo”, há grupos que tentam ressuscitar antigas práticas já perdidas no tempo, com discursos fundamentalistas, misóginos, xenófobos e discriminatórios.

Nesses grupos, predominam a presença de jovens, por todo o contexto de época que traçamos acima. Assaltados em suas esperanças e lançados ao desamparo de um futuro incerto, muitos deles preferem a solidez de uma igreja medieval, gloriosa e única detentora da palavra. Também eles irão pinçar dizeres de papas, bispos ou santos da história do cristianismo que deem embasamento às suas teorias nada modernas. Aliás, “moderno” é um termo que ojerizam. Eles têm saudades de um tempo que não viveram, preferem um ritualismo que não sofra nenhuma influência modernista, e são avessos a toda linguagem autóctone. Os membros desses grupos vivem uma religiosidade/espiritualidade desencarnada, sem levar em conta o animus do tempo em que vivem. Muitos aderem a uma proposta incompatível com a vivência humana dos afetos, da sexualidade, da erótica, da fé e do convívio com os demais crentes. Para manterem suas propostas, alguns se isolam em “fraternidades” ou suportam a “missa nova” por não terem, ainda, a versão que lhes pareça mais digna e fiável, e que por um equívoco histórico chamam-na de “missa de sempre”, algo que nunca existiu na história da Igreja.

A doutrinação deles será feita por líderes com discursos separatistas e com alto teor fundamentalista, levando-os gradativamente ao fanatismo e à intolerância com aqueles que pensam ou agem diferentes deles. A família será a primeira ser atingida. Há casos de filhos que, aderidos a essas correntes religiosas, já não conseguem mais conversar minimamente com os seus pais. O discurso ficou enviesado por uma incompatibilidade de visão de fé, de mundo e de igreja. Sentem-se “mais cristãos” ou mais “católicos” do que o papa, o bispo ou o padre. Aliás, para muitos desses grupos, o atual papa sequer é um papa “católico”. Consideram-no herege ou, como dizem, comunista. A desobediência, rebeldia e incitação à aversão ao clero é outra marca desses grupos. Voltamos ao início de nossa reflexão.

O antídoto parece ser um só: “amo à medida que conheço”, dizia Santo Agostinho. Sem conhecimento da História da Igreja, sem o mínimo de respeito e reverência pela doutrina e obediência e comunhão com o Magistério, seremos levados por nossas próprias impressões, falíveis e míopes. Há que se dizer: Jesus quis uma Igreja (Mt 16, 18). E Ele a fundou sobre uma rocha sólida. Essa rocha deveria confirmar os seus irmãos. E nessa comunidade de irmãos, deixando passar o que passa, deveríamos nos manter unidos e firmes na fé, na doutrina e na prática sincera e honesta do Evangelho. Se o fiel, membro do corpo místico de Cristo, desejar ser unido como galho ao tronco da árvore, que é a Igreja, que esteja atento e não se desprenda. Antes, pergunte-se, com sinceridade, se o grupo ou movimento a que pertence considera válido tudo quanto refletimos acima; se não há influências estranhas ou descaminhos sugeridos por líderes que já não sabem mais para onde guiar “o bote” que há muito deixou a barca na qual se encontra Pedro e aqueles que Ele confirma.

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Por, Pe. Claudemar Silva

www.padreclaudemarsilva.com

[1] http://oglobo.globo.com/brasil/desde-2010-uma-nova-organizacao-religiosa-surge-por-hora-21114799


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