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“A Cabana”– Quando é preciso corrigir o coração

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Normalmente, não gosto de filmes com temática gospel. Eles são pedantes e dramaturgicamente pobres. Alguns têm o péssimo hábito de querer provar o improvável: Deus. Há sempre um confronto entre ateu e crente e, claro, no final o ateu se converte. Nada mais nauseante. Não gosto.

Também não tenho simpatia por modismos. Se entro numa loja à procura seja do que for e a vendedora me diz: “esse é campeão de vendas”, então já o retiro da lista. Gostar do que todo mundo gosta não me parece muito racional. Talvez por isso não li o livro “A Cabana” do escritor canadense William P. Young, lançado em 2007. Virou best-seller. Não suporto best-seller. Em todo caso, fui assistir ao filme ainda em cartaz. Embora não tivesse lido o livro, sabia do contexto. E confesso que a descrição dos personagens pareceu-me altamente interessante. Pois, um Deus assim: gordo, negro e mulher não é coisa que se ouve comumente.

O início do filme me fez recordar “Deus não está morto 1, 2…”. Pensei em me retirar da sala de cinema. Coisa chata! Diálogos repletos de lugares comuns e jargões do meio religioso que dão frio na espinha. Mas relutei em sair. Fiquei. Aos poucos o filme foi ganhando um colorido altamente teológico. As questões postas pelo personagem central, tão antigas quanto a humanidade, não eram respondidas à queima-roupa. Não estavam prontas. Eram uma descoberta a ser feita paulatinamente. A única figura travestida do imaginário cristão era o Filho, representação de Jesus Cristo. Até mesmo a aparência física traz os trejeitos do Cristo ocidental. Sem surpresas. A figura de Deus Espírito Santo é interessante. Uma moça. Embora a descrição que se fazem dele (a) no filme não me pareceu muito convincente. Ela é pouco criativa ou instigante. Um tanto apagada e “insípida” para um Espírito que se defina como criativo e dinâmico como sugere o ruah bíblico.

Deus Pai merece um olhar especial. Que figura simpática. Não por acaso é interpretado pela brilhante atriz norte-americana, Octavia Spencer, que inclusive interpretara uma cientista no filme “Estrelas além do tempo”. O riso dela é cativante, o rosto afetivo e a interpretação digna de Hollywood. Ela poderia ser nossa mãe, uma amiga querida da família ou nossa professora de literatura. A cena em que ela prepara o jantar é altamente maternal. Um Deus que não é ranzinza, não é do sexo masculino e que tem um alto senso de humor merece ser visto de perto. Ele, inclusive, toma sol e chama os homens de “idiotas”. Um Deus que deixa livre o ser humano e se apresenta como proposta merece ao menos ser ouvido. É talvez aí que o filme ganha todo o seu diferencial: ele propõe uma imagem fidedigna de Deus.

O personagem central, Mark, interpretado por Sam Worthington, está dilacerado pela dor, pelo luto e pela tristeza. A perda da sua filha caçula, brutalmente assassinada, o fez desacreditar de tudo e de todos, inclusive dele mesmo e de sua família. Ele culpa Deus. Pensa que a morte trágica de sua filha foi castigo de Deus. Que Ele o abandonou no momento em que mais necessitavam d’Ele. A bronca de Mark com Deus é real e ele não titubeia em lançar-lhe ao rosto a sua mágoa. Para ele, Deus o abandonou como abandonara Jesus na cruz. Deus tem o péssimo hábito de abandonar os seus amigos, aqueles que Ele diz amar, nos momentos mais difíceis. Deus Pai ouve em silêncio a queixa sincera. “Você interpretou mal as Sagradas Escrituras”, se limita a dizer.

De fato, a interpretação rasteira em relação a Deus não é própria do personagem atormentado pela dor e pelo sofrimento. É de praxe na história humana colocar a culpa em Deus pelos males existentes no mundo. Desde o enigma de Epicuro, passando por Leibnez até Richard Dawkins a questão é a mesma: “As antigas perguntas de Epicuro permanecem sem resposta. Quer ele (Deus) impedir o mal, mas não é capaz de fazê-lo? Então ele é impotente (i.e, não é onipotente). Pode ele fazê-lo, mas não o deseja? Então ele é malévolo. Não é ele tanto poderoso como o deseja fazê-lo? De onde, pois, procede o mal?” (David Hume).

A resposta a essa questão, tão antiga e tão nova, é respondida com todo o bom senso que ela merece: também Deus é afetado pelo mal, embora não seja o seu promotor. Não é porque não se compactua com o mal que Ele o deseja ou o mantém. O mal é um mistério. Adentrou a história humana e permanece ainda no mundo. Afronta Deus e a sua criação inteira. O primeiro a sofrer com o mal existente no mundo é Deus. A morte, a violência e o sofrimento experimentados pelo homem é um grande escândalo também para Deus. Nesse sentido, o filme faz um grande contributo à Teologia séria, honesta e verdadeiramente cristã: corrige a imagem deturpada de Deus. Depois dos Evangelhos e da Teologia Bíblica, foi a imagem mais correta que vi de Deus.

Afinal, quantos homens e mulheres, cristãos e não-crentes, julgam Deus a partir de seus próprios pressupostos! Cultuam uma imagem caricata e repleta de deformidades. Também Mark lançava em Deus seus próprios equívocos, preconceitos e experiências traumáticas. O personagem traz em si todas as feições de um homem em decomposição: ferido pela dor, mantém-se preso aos ressentimentos e ao desejo de vingança. Outro grande contributo do filme é repropor os valores do Evangelho como inalienáveis: o amor e o perdão. A desconstrução da imagem de Deus passa pela desconstrução do próprio coração humano. Sem afugentar do peito o ódio e o ressentimento, ninguém poderá chegar a conhecer a verdadeira imagem de Deus que é, precisamente, misericórdia.

Mark está assentado na cadeira do juiz, como a maioria de nós. Sentamo-nos ali para julgar os outros, nós mesmos, o mundo e Deus segundo os nossos parâmetros de justiça e de verdade. Somos demasiadamente rápidos no julgamento e na condenação. A mensagem principal do filme passa por essa dobradura: somos peritos em julgar e condenar, mas pouco dispostos a confiar e a experienciar a grande misericórdia de Deus. Deus não condena ninguém. Nem mesmo o carrasco que matou a filha de Mark nem o seu pai que o agredia bem como à sua mãe. É o pecado do homem que o condena. Deus só pode amar. Deus olha para os seus e vê no homem e na criação inteira o reflexo do seu amor e da sua bondade. A corrupção no coração humano não é culpa de Deus, e Deus não tem nada a ver com isso. É preciso arrancar de dentro do peito as ervas daninhas da vingança, o lodaçal espesso do ódio e se permitir caminhar sobre águas límpidas de perdão e de reconciliação.

Só quando se permitiu revisitar o próprio sepulcro, foi que Mark pode sair vitorioso e transformado daquela sua prisão interior. Precisou, antes, sepultar tudo aquilo que o mantinha preso às suas convicções errôneas e deturpadas acerca de Deus, do homem e do mundo. A cena mais dramática no filme talvez tenha sido justamente essa: o sepultamento do passado para poder viver, enfim, o presente.

Cruzado o umbral da morte, Mark pode sair livre e consciente para regressar à sua família que também jazia no aprisionamento da tristeza, da indiferença e da dor. Ressuscitado, Mark pôde se dedicar àqueles que não conseguiam sequer nomear o que sentiam, como sua filha Kate que amargava o peso da culpa e do remorso. A fé de Mark, a sua nova forma de ver as coisas a partir de Deus, contagiou sua família, parentes e amigos. A sua nova forma de se relacionar com Deus trouxe cor e alegria para os membros mais próximos, inclusive os da Igreja em que frequentavam. Seu jeito novo de viver testemunhou a grande mudança ocorrida no lugar mais difícil, inóspito e impenetrável da vida humana: o coração do homem. É precisamente lá, de dentro de cada pessoa, que Deus lança um olhar e uma palavra que se pretende ser para a vida eterna. O mais, tudo o mais, inclusive a religião e o modo de viver dos religiosos, precisa ser posto em xeque e honestamente questionado. Afinal, nem tudo o que parece é; nem tudo o que deixou de ser perdeu de fato a sua importância.

“A Cabana” sugere precisamente isso: a Shekinah de Deus. Sua presença ativa, atenta e atuante no meio do seu povo. Ele armou entre nós sua morada para nos indicar que é a partir daqui, da nossa humanidade ferida, que poderemos contemplar a santidade e a fidelidade de Deus. Pois, se até mesmo Ele muda; converte-se, não pode o homem admitir-se endurecer o coração e a cerviz.

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Por, Pe. Claudemar Silva

www.padreclaudemarsilva.com


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