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“Que tipo de ovelhas nós somos?”

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Essa pergunta surgiu de uma senhora que me ouviu pregar nesse último domingo (IV do tempo pascal). A pergunta dela não é sem razão. No capítulo 10 de João, Jesus discursa sobre o “bom pastor”. Ele se arroga esse título a partir das experiências anteriores de líderes políticos e religiosos: “os que vieram antes de mim foram ladrões e salteadores”. A crítica de Jesus a esses é dura. Ladrões e salteadores eram criminosos, e usurpavam aquilo que não lhes pertencia. Faziam mal aos rebanhos; feriam e matavam as ovelhas, quando não o pastor. A imagem alegórica utilizada por Jesus é muito feliz. Ele se vale de uma realidade conhecida por todos: por gente simples e pessoas letradas, do campo e da cidade. Os ladrões eram os políticos e religiosos de seu tempo que se valiam de seus postos para oprimir, coagir, ludibriar e matar o povo. Vale especialmente para hoje. A corrupção é uma forma de roubar do povo os muitos direitos que ele tem: à saúde, à educação, ao lazer, à cultura, à segurança, e a uma vida feliz. A imperícia dos governantes gera morte. O desvio de recursos para os bolsos e contas pessoais é um crime hediondo e um pecado gravíssimo. O justo juiz e Pastor supremo lhes pedirá contas.

Jesus se vale de uma profissão pouco considerada em seu tempo. O pastoreio era uma profissão sem glamour, tão diferente das de hoje em que os homens públicos são vistos e tratados como reis: foro privilegiado, ajudas de custo milionárias, altos salários, comissões, muitos assessores e aposentadorias longevas, ligeiras e salários altíssimos. Poucos, na época de Jesus, queriam aquele ofício de pastor para si. Hoje, a busca pela “carreira política” encanta a todos e se tornou uma moeda de troca valiosíssima, em que empreiteiras, empresas e o terceiro setor são os maiores beneficiados. A barganha gera propinas altíssimas e um esquema que remonta ao Brasil colonial. “O serviço ao povo” é engodo para iludir os mais simples. A falácia já não convence mais ninguém, exceto aqueles que se valem dela para se perpetuarem no poder. O poder, aliás, corrompe, é mortífero e diabólico. A profissão de pastor, no entanto, era desconsiderada e mal remunerada. Conviver com animais não era algo nobre. Pelo contrário. Longe da cidade, passando as noites ao relento, no frio e na chuva, e tendo que vigiar animais muitas vezes indóceis contra os perigos alheios e noturnos. Tal ofício era visto como uma missão inglória.

Todavia, Jesus descortina uma imagem idílica do Pastor e do seu pastoreio. O Pastor é “bom”, prestativo, caridoso, tão diferente dos maus pastores. Esse tem paixão pelo rebanho. Conhece as suas ovelhas pelo nome. Dar nome a um ser irracional sugere estima sincera. O Pastor ama as ovelhas que estão sob o seus cuidados. Ele as ampara com docilidade. Sabe do temperamento de cada uma delas e não se deixa vencer pelo cansaço. Abre e fecha a porta do redil para que elas possam passar e encontrar pastagem. Quando o tempo é de seca, cabe ao Pastor levá-las para outros campos mais verdejantes em busca de um alimento sólido e salutar. O Pastor se esmera para que as ovelhas tenham vida e vida em abundância. Afinal, a vida de Pastor, o seu sustento e a sua alegria dependem da manutenção da vida das ovelhas. Ele dá a sua vida pelas ovelhas. E essa é a qualidade do seu amor para com elas. Os pastores de hoje dão a vida por suas ovelhas? Políticos e religiosos são capazes de “perderem” para que suas ovelhas ganhem? As reformas atuais respondem por si. Quanto os “pastores” estão dispostos a abrirem mão para que as ovelhas não sofram mais do que já têm sofrido? Quando irão cortar na própria carne para que suas ovelhas não sejam tosadas, feridas e mortas? O Pastor da parábola de Jesus sentia profundamente a morte de uma ovelha, seja por desnutrição, pelo ataque dos lobos ou pela violência dos salteadores. Feri-las é como se o ferissem frontal e diretamente.

Do pastor, sabemos bem. Mas, e das ovelhas?

Ora, uma ovelha é como todo animal irracional. Tem seus instintos. Por vezes, indomáveis. Em outras, deixa-se domesticar. Um animal costuma dar trabalho para quem o pastoreia. Não compreende de imediato a vontade do Pastor. Ovelhas, então, são teimosas e obstinadas. Há aquelas que buscam o abismo, talvez em busca de uma pastagem mais verdejante ou por simples ingenuidade de ovelha. Algumas se perdem do rebanho e ficam vulneráveis a qualquer contratempo, seja do clima ou dos animais à espreita; o lobo, a serpente e de outros animais carnívoros. Mas o pior deles, denuncia Jesus, é o ladrão. Esse rouba para vendê-las, para extorquir o dono do rebanho ou para matá-las para alimento. Não tem amor pelas ovelhas. Elas são simples objetos para o seu prazer.

A parábola é perfeita e atual. Quis Jesus que os cristãos fossem identificados com essa imagem repleta de ternura e de beleza: a do Pastor que cuida de suas ovelhas. Há inúmeros quadros pintados a partir dessa cena. O Pastor, com o seu cajado, vai à frente seguido pelas ovelhas. Enquanto elas o veem ou ouvem a sua voz, não se perdem. E essa máxima vale para a vida cristã.

Enquanto os cristãos se colocam no seguimento a Jesus, não se perdem no caminho. Seus valores, sua ética, sua moral e suas crenças têm a ver com os ensinamentos do Cristo. Tais ovelhas são atentas à voz do Pastor. Conseguem identificá-la em meio às muitas outras vozes. No mundo o que não falta são vozes. Muitas delas destoam enormemente dos ensinamentos do Evangelho. São adeptas da mentira, do ódio, da violência e da cultura de morte. Há pregações de morte no mundo em que vivemos. E elas estão permeadas pela intolerância, pelo preconceito, pela misoginia, xenofobia e pelos muitos muros que ainda hoje levantamos. A ovelha de Jesus não admite tais contradições. Não se deixa enganar facilmente.

Porém, há aquelas que são voluntariosas. Aproximam-se de Jesus, mas não aceitam mudar. Querem manter o mesmo aspecto de antes. Pensam que para serem ovelhas do redil do Senhor não precisam de nenhuma tosa. Podem continuar indo a todo lugar e se alimentando de todo e qualquer alimento. Recusam o alimento que o Pastor lhes oferece. Estão acostumadas com muitos outros sabores. Não querem abrir mão ou renunciar. Preferem as comodidades de antes. Pleiteiam usufruir do redil à sua maneira. Reivindicam uma agenda própria, sem muito compromisso com o Pastor e sua proposta. Consideram-na demasiadamente pesada e inviável. Listam o que desejam e o que não desejam. Fazem do rebanho um supermercado onde se escolhe o que querem e o que não querem. Preferem ser “a ovelha negra” do rebanho. Não se sentem iguais e desejam ser tratadas de modo diferente e poderem conservar suas diferenças. Algumas trazem elementos de outros redis e rebanhos por onde passaram. Querem agregar tais experiências ainda que contrárias ou contraditórias nesse novo redil a que dizem pertencer agora. Exigem democracia. Querem seus direitos de ovelhas respeitados. Mas não estão dispostas ao novo. Não se abrem ao novo, à voz do pastor nem àquilo que Ele lhes propõe: um outro caminho, um novo modo de ser ovelha. Elas dificilmente se sentirão pertencentes ao rebanho desse Pastor. O redil lhe parecerá sempre um lugar estranho, hostil e inóspito.

Existem as ovelhas que se aproximam do pastor por outros interesses. A ovelha que Jesus, o “bom pastor”, procura são aquelas se deixam orientar por sua voz. Logo, é preciso haver docilidade e obediência por parte da ovelha. Mas a ovelha interesseira só procura o Pastor quando sente fome ou sede; calor ou frio. Saciada, ela se afastará do Pastor e, pouco a pouco, do redil que a acolheu. Também existem aquelas que quando machucadas “berram” para que o Pastor as ouça. Querem e precisam ser levadas nos ombros. Não conseguem dar nem mais um passo. Estão com as patinhas quebradas ou tresmalhadas pelos muitos espinhos e pedregulhos do caminho. Como o Pastor é bom, ele volta e as recolhe, enfaixa as feridas, deita unguento e sara as machucaduras. Por piedade, põem-nas sobre os ombros e as leva em segurança. Porém, quando recuperadas de suas dores, não sentem mais necessidade do Pastor. Vão embora. Dão um jeito de saírem do redil e procurar por si mesmas outros redis que lhes pareçam mais interessantes.

Há ainda as ovelhas temperamentais. O Pastor nunca sabe como irá encontrá-las. São volúveis. Num dia, estão ciosas e atentas. Ao primeiro chamado, elas respondem satisfatoriamente. Dão a entender que não procuram outra coisa, senão a orientação do Pastor. São solícitas, dispostas e leais. Espreitam o pastor bem de perto para não perder nenhuma de suas indicações. Têm conversões instantâneas e meteóricas. Parecem ter mudado da “água pro vinho”. No outro dia, feridas em sua vaidade, no orgulho exacerbado ou sentindo ciúme das demais ovelhas e considerando-se preteridas, elas se recolhem a um canto e não querem “papo”. O Pastor chama, reivindica suas presenças, trata-as com carinho, mas elas fingem não ouvir. Estão ressentidas e não se deixam interpelar pelo Pastor. [pobre Pastor!]. Ele, pacientemente, explica-lhes que precisam sair e acompanhar as demais ovelhas; que há necessidade de se estar com o grupo, de não se excluírem, mas elas não se deixam convencer. Estão certas de que são melhores do que as demais ovelhas e que não precisam do grupo. São ciumentas e causam discórdia no grupo. Provocam as demais ovelhas, semeiam cizânia, propagam calúnias e difamações. Por onde passam, deixam rastros de ódio e de vingança. Pisam as outras ovelhas, expõem suas feridas e dispersam o rebanho.

Algumas, por serem bem articuladas, conseguem adeptas para suas insurreições. Infelizmente, sempre haverá discípulos para esse tipo de comportamento. Então formam um rebanho paralelo ao do Pastor. Extremistas, julgam heréticas as que ousam permanecer junto dele. De perto ou de longe vigiam o comportamento das “ovelhas pecadoras” para denunciá-las ou difamá-las publicamente. São legalistas e conhecedoras dos muitos códigos do redil. Se alguma trapaceia ou fere algum códice, serão execradas ou punidas com a excomunhão. Tais ovelhas detratoras sentem prazer em julgar e condenar aquelas que caíram em alguma falta. Por não experimentarem ou não acreditarem no perdão gratuito não são misericordiosas com as faltosas. Preferem a punição à conversão. Se pudessem, tais ovelhas matariam o Pastor para assumirem o seu lugar. Consideram que o Pastor não é digno do posto que ocupa. Consideram-no um usurpador que ultraja a dignidade da função. Muitas delas, profundamente magoadas, frustradas e revoltadas com o Pastor, resolvem ir embora do redil. O Pastor perdeu o encanto ou o grupo tornou-se pouco atraente para elas. Talvez encontrem outro pastor e outro redil com uma proposta mais ao gosto refinado que possuem, e seja segundo o modelo que consideram original, conservador ou fiel.

Há, por fim, as ovelhas indiferentes. Estão ali, mas não sabem bem por que. Nasceram já naquele redil. Dizem: “nasci ovelha, cresci ovelha vou ser sempre ovelha” [meus avós eram católicos, meus pais eram católicos, e eu vou ser católico até morrer]. Cresceram com as demais ovelhas e sempre ouviu um discurso que lhes parece ser credível. Mas isso importa menos. Importa mais a adesão social ao redil. Ali, têm o alimento na hora certa, bebem da água limpa que o Pastor disponibiliza e vão com as demais para novas pastagens que o ele as conduz. Não houve necessidade de nenhuma “conversão” mais profunda àquele redil nem tampouco adesão ao rebanho. Não conheceram sequer outra realidade. Aquela lhes parece cômoda. Não interagem muito, mas não são indóceis. Seguem com as demais; vão aonde mandam ir e fazem o que pedem. Mas não há da parte delas nenhuma proatividade, nenhuma força de vontade em contribuir com o grupo. Não se prontificam a nada. Não arredam o pé (ou será a pata?) para levantar, construir, transformar seja o que for. Não propõem nada, não criticam (ao menos não em público) e não se implicam quando falam das muitas necessidades que o rebanho possui. Fingem não ver que uma colega está caída ao lado ou passa por alguma necessidade. Ignora qualquer pedido de ajuda. Não querem ser incomodadas. Eximem-se de qualquer desgaste extra. Não estão dispostas a nenhuma contrariedade. Evitam fadigas. Sabem que não lhes faltará o essencial. Então não se sentem responsáveis pelo bem de todos. Sentem que já faz muito em não causarem maiores danos ao rebanho. Não toleram ser incomodadas. Preferem ser deixadas a um canto. A aparente discrição é marca mais notável delas. São rostos conhecidos, mas nunca se ouviu a voz nem se pode contar com suas participações efetivas.

De todas as ovelhas, as que Jesus, o “bom pastor”, mais procura são certamente aquelas que almejam, de fato, pertencerem ao seu redil. Não por acaso, Ele é a porta de acesso do redil. Por Ele, as ovelhas poderão entrar e sair quando quiserem. Poderão, inclusive, não voltar mais. Permanecerão as que quiserem permanecer. Retornarão apenas aquelas que sentirem saudades ou se derem conta de que não há melhor redil para se estar do que ali, junto do rebanho do “bom pastor”. Porém, para ser do redil do Senhor é preciso, antes de tudo, gostar de ser “ovelha”. De ser amada e aprender a amar. De ser cuidada e aprender a cuidar. De ser pastoreada e pastorear. Uma ovelha sempre sabe o seu lugar, e é sempre capaz de reconhecer o dom de se ter o pastor que cuida, ama e zela por sua vida. A ovelha agradável ao Pastor por excelência é aquela que se torna, livremente, ovelha do seu redil e é uma com o seu rebanho. Faz comunidade. Não se isola e é também pastora junto às demais.

Isso posto, é hora de cada um responder: que tipo de ovelha eu sou?

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Por, Pe. Claudemar Silva
www.padreclaudemarsilva.com


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