Comentário ao Evangelho do 22º Domingo do Tempo Comum: Mc 7,1-8.14-15.21-23
“Uma religião baseada em preceitos humanos” – essa é a advertência de Jesus aos fariseus e aos mestres da Lei no evangelho deste fim de semana. Seria possível, entretanto, uma religião que se baseasse em outros preceitos, que não fossem humanos? Afinal, bem sabemos que Revelação não significa um “ditado” de Deus aos seus escolhidos; que inspiração dos textos bíblicos nada tem a ver com psicografia; enfim, que toda Revelação de Deus compilada nas Escrituras ou recolhida na Tradição serão sempre indiretas, no sentido de que é Deus falando de si mesmo em linguagem humana. Ou seja, a experiência religiosa não fala presunçosamente de Deus em si mesmo, mas de como ele se deixa ver a nossos olhos humanos, se deixa sentir com nosso coração humano e amar com nosso amor humano. E quanto mais humana for essa experiência, mais religiosa será. Pois, se somos de fato a imagem do Criador, somos também capazes de, em nossa humanidade, refletir mesmo que palidamente o esplendor daquele que nos gerou. A coletânea das mais profundas experiências humanas de transcendência e profundidade – nisso consiste a religião. De modo que, bem compreendida, toda religião será sempre regida por preceitos humanos, no melhor sentido da palavra “humano”. O contrário disso seria uma religião descida diretamente do céu, a-histórica, imutável, saída perfeitamente dos lábios de Deus mesmo, promulgada por decretos validade universal, sem limites de tempo e espaço. A história das religiões nos demonstra que, invariavelmente, a crença em uma religião regida por preceitos diretamente divinos não se sustenta. E que essas pretensas experiências religiosas divinas, não raro, continham em si a tentativa de universalizar a face de uma cultura singular, uma verdade moral, de uma ordem tirânica de uns sobre os outros… A religião é um fenômeno humano, que constitui nossa humanidade e integra nossa abertura (humana) à transcendência e à esperança. De modo que não parece ser esse o problema de que fala Jesus, quando fala em uma “religião humana”.
No evangelho, a resposta de Jesus foi motivada pela acusação dos religiosos: os discípulos de Jesus não obedecem aos preceitos antigos, “herdados por tradição”. Esses preceitos não correspondem exatamente a mandamentos da Escritura, mas fazem parte do modo costumeiro de agir. Jesus, em inúmeras passagens, demonstra imensa liberdade frente à interpretação dos mandamentos, quanto mais diante de costumes. Por outro lado, ninguém de nós, homens e mulheres de hoje, duvida de que o ato de lavar as mãos antes de comer é altamente recomendável, uma vez que tem a mais ver com assepsia e higiene do que com simples preceito tradicional. Mas não é nada disso que está em questão. Pois Jesus explica: “vocês abandonam o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. E mais: “por isso, de nada adianta o culto que prestam a Deus, pois o honram com os lábios, enquanto o coração está longe dele”.
Começamos, pois, a compreender a preocupação de Jesus. Afinal, qual a finalidade da religião, senão esta: aproximar o fiel do coração de Deus e sustentar essa proximidade? Que outro bem pode render ao fiel a religião, a não ser a paz e a inteireza do espírito, a integridade e a retidão nas atitudes; a serenidade e a leveza na travessia dos caminhos da vida? E que fruto nobre pode-se colher da religião, além da justiça aos desprezados, do cuidado redobrado com o mundo e o zelo por relações mais honestas e transparentes? No dizer do Deuteronômio (1ª leitura), tudo isso constitui o patrimônio de fé entregue a nossos pais – patrimônio que deve ser protegido, transmitido, amado e vivido. Para Tiago (2ª leitura), é dom do alto, a “Palavra da verdade, na qual fomos gerados” e na qual encontramos a “religião pura e sem mancha”. E para Jesus, em Marcos, é a religião regida por preceitos de Deus. Esquecer esses objetivos da religião, colocando-a a serviço de interesses escusos, da manutenção de privilégios ou da dominação de uns sobre os outros… isso não seria mais do que uma perversão religiosa, uma falsa religião, ou uma “religião simplesmente humana”. E “humana” no pior sentido da palavra: fechada a Deus, pois encontra sua razão de ser apenas nas glórias humanas, sempre tão passageiras. E, olhando para nossa história e para os cenários de Igreja de nosso tempo, é preciso reconhecer o quão de perto esse risco nos acompanha.
Por fim, a advertência de Jesus se veste de maior seriedade quando nos damos conta de que não existe uma separação segura entre os preceitos religiosos que seriam eminentemente humanos e outros que resultariam seguramente divinos. Pois o mesmo costume que, num momento, constitui um auxílio para descobrir a presença de Deus, pode, em outro, perder seu sentido e se transformar num entrave humano da religião. E a mesma lei que num caso defende a vida, em outro pode matá-la. Por isso, caso a caso, os santos preceitos deveriam ser cuidadosamente avaliados, sob risco de traírem sua vocação primeira à manutenção da vida e à proximidade com Deus.
Aprendamos com Jesus que pureza e impureza, religião divina e religião meramente humana, lei santa e lei ímpia não são dados tão objetivos quanto parecem, pois dependem muito mais da honestidade do coração e do quanto favorecem a fé e o amor. E que, iluminados por esses santos critérios, avaliemos com coragem o modo como praticamos a fé e a ensinamos àqueles que são iniciados à vida de nossas comunidades.
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Por, Frei João Júnior ofmcap