Comentário ao Evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum: Mc 8, 27-35
Ao longo de sua história, as Igrejas cristãs dedicaram grande esforço para garantir a pureza do ensinamento sobre Jesus. Concílios, sínodos, vigilância da hierarquia, zelo no ensino superior, burilação teológica, métodos catequéticos, elaborações litúrgicas… tudo em busca de manter fidelidade à pregação dos apóstolos e a serviço de esclarecer sempre mais e de acordo com as exigências de cada tempo o ensino (doctrina, doutrina) sobre Jesus e sua missão salvadora. Uma preocupação muito legítima, uma vez que é sempre possível que a fé se degenere num aglomerado insensato de afirmações absurdas, num confuso emaranhado de ilusões, ou na simples projeção de nossos desejos e interesses. A história das religiões – também do Cristianismo – demonstra isso com fartura de exemplos.
Mas seria isto suficiente: a correta doutrina sobre Jesus? Acaso a manutenção de um corpo doutrinal consistente e correto já configuraria, por si só, fidelidade à fé cristã? Ou a manutenção sempre intacta das formulações doutrinárias, corretas em seu conteúdo e forma, repetidas sempre do mesmo modo pela Tradição, mantendo inclusive as mesmas palavras e expressões demonstradamente corretas – isso já exprimiria e garantiria a verdade da fé? Suscintamente: a ortodoxia (palavra correta) significa, em si só, a verdade sobre Jesus?
O evangelho deste fim de semana parece sugerir outra coisa. Estamos exatamente no meio do texto de Marcos, a caminho de Jerusalém com Jesus e os discípulos. E, embora no meio do evangelho (já percorremos oito dos dezesseis capítulos), o texto segue se refere apenas às últimas duas semanas de Jesus – da transfiguração ao calvário. Os discípulos já caminharam com o mestre desde a Galileia, já testemunharam a confissão de fé e a conversão de muitos, já comeram o pão que alimentou cinco mil… enfim, já percorreram com Jesus um longo caminho – não tanto uma longa distância em quilômetros, mas um intenso itinerário da existência. E é “no caminho”, ou seja, na intimidade do discipulado e em meio às exigências do seguimento, que Jesus dirige a eles a pergunta mais central e mais determinante de todo o Evangelho de Marcos: “quem dizem vocês que eu sou?”, ou melhor, “quem sou eu, para vocês?”.
A pergunta não é central apenas literariamente, em Mc – embora também o seja. O que está em questão é a centralidade de Jesus na vida daqueles que o seguem, na experiência dos discípulos que, no tempo do evangelista, testemunhavam o encontro com o Senhor Ressuscitado. Para nós, é a pergunta que determina se estamos ou não “no caminho, com Jesus”. A pergunta que muda tudo, dependendo da resposta que suscitar…
E, na hora de responder, não adiantam muito as fórmulas decoradas na catequese de perguntas e repostas. Pois, como os primeiros bem sabiam, Jesus não é uma ideia assimilada ou uma lição aprendida. Ele é alguém que se deixa encontrar e se oferece numa relação de intimidade com aqueles que o procuram – era assim para os antigos e o é para nós. No evangelho, Pedro respondeu com acerto: “Tu és o Messias”. Mas não sabia ainda que isso implicaria na perseguição de Jesus e em sua morte vivida como entrega corajosa aos algozes e entrega confiante ao Pai do céu. Como ele, era muitos na comunidade que seguiam Jesus Ressuscitado, confessavam-no como Senhor de sua vida, às vezes sem se dar conta do que isso significava. Também entre nós, o mesmo risco permanece: passarmos a vida na pretensão de seguir Jesus, sem nos perguntarmos quem ele realmente é; esperando dele o que ele não pode nos dar; oferecendo a ele muitas coisas, menos aquilo que ele realmente pede de nós. Seguir as próprias ilusões e caprichos infantis, em vez de seguir ao Cristo Jesus – um Messias muito diferente das glórias e facilidades injustas deste mundo, muito mais afeiçoado ao “Servo Sofredor” do que ao Rei Filho de Davi – essa talvez seja a advertência deste evangelho. Pois no momento da confissão mais sincera da fé, a retidão das proposições e formulações de fé pode ser importante, mas realmente determinante será a experiência que tivermos feito com Jesus, a sinceridade de nosso encontro com ele, a intimidade de nossa relação com ele. Porque é desde a profundidade dessa experiência que o Senhor nos comunica quem ele verdadeiramente é.
Que nos esforcemos para conhecer Jesus sempre mais, por meio do ensino sempre vivo da Igreja, pelas Escrituras e pelas formulações de fé. Mas cuidemos ainda mais de manter viva e íntima nossa relação com ele, buscando viver com autenticidade as experiências de encontro que a fé nos proporciona. Pois, no fim de nossas especulações de fé e longas exposições doutrinárias, não será um credo ou uma formulação que nos salvará, mas a plena verdade expressa na bondade com a qual Deus revelou seu próprio coração em Jesus, vivo e caminhante dentro de nós.
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Por, Frei João Júnior ofmcap.