Comentário ao Evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum: Mc 9,38-43.45.47-48
Vivemos tempos difíceis para o diálogo. Em todas as esferas da vida social, multiplicam-se verdadeiros discursos de ódio à diferença e de recusa a qualquer forma alternativa de ser. Em matéria política, a defesa apaixonada ou o ataque desmedido a um governante ou a um partido têm roubado a sanidade de muitos e a honestidade de outros tantos, a ponto de uma opinião (pró ou contra) estar acima da verdade e do bem. Vemos renascer das sombras sociais antigos preconceitos, nunca muito bem superados: cor da pele, condição social, modo de vestir e falar, identidade sexual, gosto artístico... tudo transformado em critério de recusa e exclusão. Os mais pobres, quase sempre espezinhados, experimentam mecanismos sociais cada vez mais sutis e eficazes de afastamento da vida pública. A segurança (individual e privada, claro), transformada pela ideologia midiática em verdadeira obsessão, passa a financiar discursos militaristas de forte repressão policial e violência estatal, fazendo identificar o pobre como inimigo e ameaça social. Enfim, vivemos tempos difíceis para o diálogo, quase sempre resumido a argumentos rasos e opiniões simplistas – sustento adequado aos preconceitos e às ideologias de ódio.
Esquecidos do mandamento do Senhor, que diz que “entre vós não deve ser assim” (***), é possível que também nós, cristãos, adiramos a esse modo de ser. E isso é um risco bastante antigo. No evangelho, os discípulos relatam a Jesus que viram alguém pregando em nome do Mestre, mas ordenaram que se calasse, “pois não era dos nossos” (***). No livro dos Números (1ª leitura), alguém corre a Moisés para informar que dois homens estão profetizando no acampamento, pretensamente sem a permissão do chefe (***). Em Moisés e em Jesus, encontramos a mesma resposta: “Não vos enciumeis, oxalá todo o Israel profetizasse” (***); e “Não proibais, pois quem não é contra nós, é a nosso favor” (***).
De fato, seria possível fixar um limite à atuação do Espírito ou delimitar o alcance exato das palavras de Jesus? Seríamos nós os únicos herdeiros do patrimônio do “Nome” de Jesus? A legitimidade de sua herança dependeria unicamente da fidelidade formal ao seu ensino e à pertença institucional às Igrejas cristãs? No mesmo evangelho que ouvimos, Jesus explica em que consiste a fidelidade querida por ele: até dar de beber um copo d’água por causa do seu Nome ou velar pela fé dos pequeninos, sem escandalizá-los, já é fidelidade e “não ficará sem sua recompensa”. Que recompensa? A gratuidade de fazer o bem, a generosidade do coração largo, a bondade que nos torna cada vez mais humanos – e, por isso mesmo, mais capazes de compreender e viver a Boa Notícia de Jesus. Como fizeram os primeiros cristãos, também nós deveríamos tomar muito a sério esta correção: Deus não se resume à nossa experiência dele; a fé cristã sempre será maior e mais rica do que nossas pequenas concepções; o Espírito é Deus e age no mundo que é seu, sem dever contas a nossos cânones institucionais. Contemplar o florescimento do Evangelho fora de nossos círculos confessionais, longe de nos enciumar ou ameaçar nossa autoridade de intérpretes do mistério de Cristo, deveria nos encher de alegria e esperança. E dormiríamos até mais tranquilos, cientes de que o Reino de Deus não depende apenas da fraqueza de nossas mãos para se afirmar no mundo.
Mas que ninguém se engane: a palavra do evangelho exige coerência. É preciso que todo o corpo fale da mesma notícia proclamada pelos lábios. Mãos, pés, olhos, como diz o evangelho... ou, dito de outro modo: gestos, passos, olhares – tudo unido no mesmo esforço de fidelidade à palavra que nos penetra e transforma a vida. De modo que a ordem de Jesus (“se faz pecar, corta”), não é tanto uma ameaça, mas o convite e deixarmo-nos possuir inteiros pela Palavra que nos faz “entrar na vida” – Palavra que se expressa em todos os pequeninos atos de generosidade, ainda que não explicitamente movidos pela fé.
Que aprendamos a não impor barreiras ao Evangelho, fixando os limites instituídos de sua ação, pois o Evangelho é sempre instituinte. Pelo contrário, eduquemo-nos para descobrir suas sementes em todo gesto humano de bondade. Que, aos poucos, essa mesma Palavra de Cristo, habitando em nós, nos transforme inteiros. E que tudo aquilo que somos – mãos estendidas, passos firmes, olhares sadios – testemunhem com coerente liberdade o mesmo Evangelho de Vida.
Por, João Júnior ofmcap