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14/02/2016: “Fecundidade no deserto”

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Comentário ao Evangelho do I Domingo da Quaresma: Lc 4, 1-13

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“O que torna belo o deserto é que ele esconde um poço, nalgum lugar”. É assim que o Principezinho de Saint-Exupéry animava seu companheiro, um aviador desalentado, que no deserto já transpunha os quase irreversíveis umbrais da desesperança. Acabadas as miseráveis provisões, restava morrer de sede… ou procurar um poço para encher os cantis. Mas como buscar um poço, no meio do deserto? Por que razão gastar as últimas forças numa errância incerta, deserto adentro, à procura do mais improvável dos dons? E, ainda mais, sem mapa para guiar a interminável procura, na imensidão solitária de areia e céu… Não, não era razoável. Mas coube ao Pequeno Príncipe (metáfora de nossos mais belos sonhos?) interromper o amargor dessa lógica mortífera, recordando ao aviador perdido (imagem da perdidura de todos nós?) a beleza fascinante do deserto, ainda mais belo porque oculta, em algum lugar, um poço de salvação.

Todos os anos, o itinerário da quaresma nos leva primeiramente ao deserto, seguindo os passos de Jesus. E quem nos guia é o Espírito, o mesmo que guiou o Mestre, assegura Lucas no evangelho de hoje. Sabemos bem: o deserto não é tanto uma localidade geográfica, lá onde os caminhos humanos não se atrevem a entrar, mas a aquarela de nossa condição de finitude e pequenez diante da grandeza da vida e das aridezes que nos acompanham permanentemente. Deserto é a imagem da travessia terrivelmente exigente da existência; a amplidão mais larga das solidões humanas; a poesia das dores, dos suores e dos prantos que acompanham os passos humanos, ora perdidos nas angústias da vida. Adentrar o deserto significa dispor-se a repercorrer os caminhos da própria história, a perseguir as próprias pegadas, a constatar as próprias indecisões e a perceber os caminhos errados e as direções equivocadas. E, na mais funda solidão do próprio coração, descobrir-se irmão de todos os seres humanos, em suas buscas mais secretas – pois lá no deserto, somos todos irmãos, irmanados pela mesma pequenez.

Deserto, portanto, pode ser a imagem das experiências humanas mais duras, na busca de tornar-se gente, de fazer-se pessoa, de assenhorar-se da própria humanidade. Seria uma dureza que afastaria os mais ajuizados, fugindo da tortuosidade desses caminhos? Seguramente, não. Pois o Espírito conduz ao deserto, ao encontro de nossas demonias, como condição de, entregues de novo a nós mesmos, seguirmos, com o coração inteiro, o chamado de Deus. Uma experiência humana tão radical e tão necessária, da qual nem Jesus de Nazaré pode escapar. Pelo contrário, ele a viveu com a intensidade de um irmão nosso, igual a nós em tudo que pertence à nossa humanidade.

E Exupéry recorda aquilo que o evangelho também já nos ensinou: o deserto é belo, porque esconde um poço. De fato, lá onde os passos humanos parecem se perder, naquelas experiências mais difíceis, quase intransponíveis, não raro, encontramos um poço: o alento de uma profundidade que sacia, que fecunda, que produz. Não há deserto tão árido, que não traga em seu ventre um lençol de água fresca – contanto que se busque sinceramente, cavando no lugar certo. E a simples possibilidade de que essa fonte exista já transfigura a secura do deserto. O escândalo da fé cristã permanece exatamente este: que a felicidade, a mais plena realização humana, não acontece fora de nós mesmos ou longe deste mundo ambíguo; que é possível abrir um caminho de vida por entre os abismos da dor e da morte; que é possível encontrar um poço no horizonte do deserto; que é possível deparar-se com o sorriso de Deus, mesmo entre as cortantes contradições da vida. Sentir-se em casa no mundo, amar a finitude, realizar-se com o pouco, crer no improvável, acolher a morte… são todas preciosas lições que só no deserto se pode aprender.

“E, caminhando assim, eu descobri o poço. O dia estava raiando. […] E o Principezinho me disse: ‘os homens do seu planeta são engraçados. Cultivam cinco mil rosas num único jardim, enquanto o que procuram poderia ser encontrado numa única rosa… ou num gole d’água’”. Que as paragens desse deserto quaresmal nos recordem a essencialidade do pequeno, a preciosidade do simples, a nobreza do frágil de nós mesmos. E que, desmascarados pelo deserto, tornemo-nos mais capazes de entrever, em meio aos espinhos do mundo, as flores do Reino que já se abrem.

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Por, Frei João Júnior ofmcap


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