Comentário ao Evangelho da Solenidade da Santíssima Trindade: Mateus 28,16-20

“Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar”, profetizou o Zaratustra de Nietzsche, contra o espírito de gravidade e solenidade – o mesmo que Jesus denunciava em muitos fariseus. Acontece que há imagens de Deus que deveriam ser depostas mesmo, pois embora críveis, são verdadeiros venenos para a vida, inclusive quando deixam de traduzir o que sempre quisemos dizer quando inventamos esse conceito de trindade. Assaz pobre, aliás, para dar a saber o que talvez só a poesia saiba desencravar de nós e da vida.
De nós e da vida, pois longinquamente envolvendo-nos; proximamente em-face de nós; ou interiormente deitado em nosso coração estão o mistério da vida, do outro e de nós mesmos.Indecifráveis, irrespondíveis, apresentando-se ternos e resistindo às nossas invectivas – assim são esses mistérios. E correlato a isso é o mistério da trindade. A vida, o outro e nós, somos doçura e resistência. Deus Pai (longínquo) e Filho (em-face) e Espírito Santo (íntimo) talvez também o sejam.
Masoutra coisa não quisemos dizer quando elaboramos esse conceito de trindade, senão que Deus não está só. Deus é relação. E só o sabemosporque desde sempre ele se mostrou assim. Relação de amor entre um Pai e um Filho, unidos e diferenciados pelo Espírito. Mas Relação, sobretudo, porque Deus está sempre aberto à humanidade,disposto a nos incluir.
Não seria a trindade, portanto,tão somente a confissão do Mistério escondido e se revelando, mas também a de que é preciso resistir à solidão? À solidão de estar vivo, mas inexoravelmente suspenso no nada; à solidão de estar acompanhado e não sentir a presença; à solidão de desencontrar-se de si? Certamente, uma resistência, mas nunca uma negação da solidão, essa experiência tão humana. Pois, se fosse uma negação, teria sidoinventada apenas como autoafirmação. Ora, é porque toda relação é também abertura e fechamento, doação e recuo, doçura e resistência, afinal, que não podemos dizer que o Deus triuno é uma invenção contra a solidão; não estamos eximidos de senti-la. Mas confessar o Deustriuno é atestar, por conseguinte, que não estamos sós; fomos criados, somos libertos e acompanhados por Deus (Dt 4,32-34; 39-40); somos provocados pelo Filho que na presença de todo irmão se apresenta, convidando-nos a sair de nosso próprio egocentrismo para estarmos face-a-face com os outros (Mt 28,16-20); e pelo Espírito Santo que nos impele a chamar Deus de Paizinho, levando-nos a assumir nossa verdadeira dignidade (Rm 8,14-17). Por isso, a fé na trindade é resistência à solidão.
Foi pensando na mais elementar relação que São João Damasceno, um dos pais da Igreja, criou o conceito de pericorese; rígido por fora, mas cheio de poesia por dentro, pois a ideia que ele traduz é a de uma dança de roda, de uma ciranda entre as três pessoas da Trindade. Então, nosso Deus dança! Entre as três pessoas existe uma interpenetração profunda, inseparável. Não só entre eles, mas também entre eles e nós. Há na festa da Trindade uma alegria exultante por nos ter inserido na roda. Deus quer dançar conosco. Se o mistério da vida, do outro e de nós é correlato ao mistério do Pai,do Filho e do Espírito Santo, talvez seja motivo de que não devemos crer num Deus que não seja dançarino, ou amante da vida, em todas as suas luzes e sombras, em todos os seus percalços. Do mesmo modo, não nos deve interessar um Deus que não seja filantropo e que não se revele e transpareça no rosto do outro, inclusive dos detestáveis desse mundo. Tampouco deve ser tomado por nosso o Deus que, desde dentro, não nos dê esse impulso, esse entusiasmo, essa coragem, essa força para viver. Tais provocações, ou apelos (?) são o nosso jeito de sermos neste mundo, o mistério expresso e se desenrolando, do Deus que em toda a nossa história, foi, é e virá, sempre disponível.
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Por, Pe. Eduardo César