Comentário ao Evangelho do XXIV Domingo do Tempo Comum: Lc 15,1-32
André Paul Gide foi um escritor famoso que recebeu, em 1947, o prêmio Nobel de Literatura. Dentre suas ficções, autobiografias, diários e cartas, um de seus textos interessa muito, pois relê a parábola tão conhecida pelos cristãos como a história do filho pródigo. Com imaginação e ousadia, ele mantém proximidades e distâncias do que a passagem bíblica quer dar a entender. Num dos trechos de seu texto, intitulado “ A reprimenda do Pai”, o Pai e o Filho Pródigo travam um diálogo, do qual retiro alguns fragmentos:
“- Meu Filho, por que me abandonaste?
-Ter-vos-ei de fato abandonado? Pai!, não estais em toda parte? Jamais vos deixei de amar.
-Não porfiemos. Eu tinha uma Casa que te abrigava. Ela foi erguida para ti. Para que tua alma nela pudesse encontrar abrigo, um luxo digno de si, conforto, emprego, muitas gerações trabalharam. Tu, o herdeiro, o filho, por que te havias de evadir da Casa?
-Porque Ela me encerrava. A Casa não sois vós, meu Pai.
-Fui eu quem a construiu, e para ti.
-Ah! Vós não haveis dito isto, mas meu irmão. Vós, sim, haveis construído toda a terra, a Casa e tudo o que não é a Casa. A Casa, outros que não vós a construíram; em vosso nome, eu sei, mas outros que não vós.
-O homem tem necessidade de um teto sob o qual repousar a cabeça. Orgulhoso! Pensavas poder dormir ao relento?
-Será preciso tanto orgulho para isso? Outros mais pobres do que eu o conseguiram”.
(…)
O Pai continua:
“-O amor que te quero ensinar reconforta. Ao cabo de algum tempo, que te restou, ó filho pródigo?
-A lembrança desses prazeres.
-E a privação que vem depois.
-Nessa privação, eu me sentia perto de vós, meu Pai.
-Era preciso a miséria para te forçar a voltares a mim?
-Não sei; não sei. Foi na aridez do deserto que mais amei a minha sede”.
(…)
“Pobre filho! – retoma o pai, que o ergue pelo braço. – Talvez te tenha falado com dureza. Foi teu irmão que o quis; é ele quem dita a lei aqui. Foi ele que me intimou a dizer-te: “Fora da Casa; não há salvação para ti”. Mas escuta: fui eu que te formei; sei o que há em ti. Sei o que te impulsionava para os caminhos; eu te esperava ao fim. Se me chamasses…eu estaria lá.
-Meu pai! Teria podido então encontrar-vos sem voltar?
-Se te sentiste fraco, fizeste bem em vir. Agora vai; volta para o quarto que mandei preparar para ti… “(…).
Estou ciente de que a imagem de Deus que Gide acaba por descrever, não agrada muitos teólogos nem exegetas, mas a imagem do Deus misericordioso de Jesus não deve ter agradado muitos de seus ouvintes, especialmente os fariseus ciosos da lei. Entretanto, o que vale destacar aí, é a palavra Casa, sempre mencionada com letra maiúscula. Na bíblia, não é estranho ver essa palavra sendo utilizada para se referir à comunidade de fé, os de dentro, os discípulos. Com muito menos dificuldade poderíamos atribuir essa menção à Igreja.
A Igreja é a Casa, mas a Casa muitas vezes cerceia, até mesmo a Deus. Deus está em todos os lugares, lembra o Filho Pródigo e prossegue afirmando que Deus a tudo fez, à Casa e ao que não é a Casa, para depois acrescentar que a Casa foi construída por outros e não pelo Pai. Pequena contradição aparente, mas que dá a entender que Deus é muito maior do que a Igreja. Essa, por sua vez, é guiada por homens que muitas vezes dizem em nome de Deus e fazem Deus dizer o que eles pensam (“vós não haveis dito isto, mas meu irmão”, retruca o Filho Pródigo).
Mais engraçado ainda é pensar que o filho que retornou de sua vida indigna, reconhece que Deus é aquele perto de quem é possível encontrar resposta para sua sede, a que ele experimentou no deserto. Seu arrependimento interesseiro, na história de Gide e na história bíblica têm o mesmo desfecho: o abraço amoro do Pai, sua acolhida cheia de ternura. Mas uma fala, colocada na boca do Pai, intriga: “Foi ele (teu irmão) que me intimou a dizer; ‘Fora da casa; não há salvação para ti”. O irmão mais velho, outra vez, aparece como alguém que constrange até o Pai, e se assevera até contra Ele para obrigar-lhe à sua vontade.
Estranho? Na época de Jesus, os fariseus diziam saber bem quem era Deus. Não hesitavam ao estatuir e confirmar uma imagem de um Deus amante dos puros, dos perfeitos e irrepreensíveis; condenador de vítimas e pecadores. Muitas alas da Igreja sustentam ainda essa imagem com uma postura que se parece muito mais com a de um tribunal, do que com a de uma Casa. Imputam a Deus o próprio preconceito, o próprio ódio ao diferente, o medo e a insegurança diante do outro. Asseveram-se juízes de tudo, senhores da verdade, administradores não dos bens de Deus e de seus mistérios, mas do próprio Deus, atestando e fazendo valer Sua vontade – a que conhecem como ninguém. E ao invés de ser um abrigo, a Casa se torna uma prisão… E ao invés de ser lugar de conforto e alívio, a Casa se torna um ambiente claustrofóbico. Ademais, não são poucos os pobres que não tenham ainda encontrado um lugar nessa Casa. Sendo a Casa erguida por nosso Deus, a Igreja deverá se assemelhar mais a um lugar de onde emanam fontes de vida; onde os pobres e desconsolados do mundo, os sedentos e aqueles que se perderam em muitos desertos, reencontrem a Misericórdia.
Pois o Deus de Jesus (e também o de Gide), abre os braços num abraço consolador, onde todos esperavam a reprimenda e a punição. Diz compreender os dilemas, os dramas e as motivações de seu Filho, onde todos esperavam crítica, juízos e desprezo. Diz ter esperado pelo Filho, onde muitos já teriam desistido e o abandonado. E com amor misericordioso e prestativo, diz que estaria lá, onde quer que chamassem por Ele. Porque, para Deus, se nos esquecemos de nossa humanidade, perdidos em animalidades (ovelha perdida); se estamos esquecidos do nosso valor e de nossa real dignidade (moeda perdida), importa que descubramos logo seu amor de Pai que nos eleva de nossas baixezas, ao lugar de Filhos. É por isso que há tanta alegria, quando ele nos re-encontra.
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Por, Pe. Eduardo César