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Channel: Portal ELODAFE – Diocese de Uberlândia/MG
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Em defesa do lúdico e do pensamento crítico e livre

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A educação no Brasil sofreu um duro golpe. Em nome de uma flexibilidade e de um maior encantamento para o adolescente, estudante do ensino médio, segundo o ministro da educação, Mendonça Filho, importantes alterações serão realizadas a partir de 2018. Dentre elas, está “sugerida” a supressão da obrigatoriedade de disciplinas como artes, filosofia e sociologia, além da educação física. O inglês será o idioma obrigatório e o espanhol, língua falada nos países vizinhos, será uma mera possibilidade. Tal decisão cumpre com interesses claros e objetivos. Quem ganha? Quem perde? O adágio continua valendo: “Queres colonizar um povo? Comece pela língua”. E mais: os professores, em sala de aula, não terão mais que dispor do diploma de licenciatura. Basta possuir um “notório saber” (?).

A decisão do governo Temer, por meio de uma MP (medida provisória) – já que o Congresso estará ocupado com outras pautas, como a econômica, por exemplo -, pretende pôr em prática já nos próximos anos sugestões acalentadas durante anos, discutidas, inclusive, nos governos anteriores. Uma das alterações mais significativas, além das citadas acima, será a da permanência do aluno na escola para um período de até 1.400 horas o que tornará, gradativamente, o ensino médio integral. Nesse ínterim, o aluno poderá se dedicar mais às disciplinas afins com suas aptidões, bem como a preparação para o mercado de trabalho através de cursos técnicos profissionalizantes.

Tais medidas evocam uma realidade perturbadora, mas verdadeira: o ensino público e privado no Brasil está caótico. Nossas salas de aula não estão apenas sucateadas, mal equipadas, com evasão de alunos e com problemas de disciplina alarmantes. Falta também verdadeira reverência pelo conhecimento e pela busca esmerada da diminuição da ignorância e da aplicabilidade do saber aprendido. As escolas carecem de ações motivacionais, os professores de salários dignos e os alunos de incentivos e oportunidades reais. Soma-se a isso, o descompromisso e a inaptidão dos pais e responsáveis em colaborar com a escola. Não receberam antes e agora não sabem ou não podem colaborar.

Por isso, é evidente que a educação precisa de cuidado e atenção redobrados. A corrupção, tão arraigada em nossa cultura, sobretudo por parte de alguns governantes, afeta enormemente a seriedade e o respaldo do processo educacional como um todo. O descrédito ganha as manchetes dos principais jornais, não obstante os esforços em sala de aula, oriundos quase sempre das mulheres – professoras, diretoras, pedagogas, supervisoras, etc -. Esse cenário põe o Brasil num ranking lastimável e vergonhoso de despreparo, falta de políticas assertivas e de diálogo aberto e sincero com a população. A decisão catabática do governo, porem, põe em cheque a sua moral e sua idoneidade governamental, sobretudo por causa de um passado recente de repressões como foi o período tenebroso da ditadura em que essas mesmas disciplinas foram expurgadas da grade curricular. A MP, nesse sentido, assusta, amedronta e causa repulsa.

Os questionamentos e dúvidas serão enormes ao passar dos dias, e não poderia nem deveria ser diferente. Afinal, a população não foi consultada, os grandes mestres da educação nacional sequer foram ouvidos e os alunos – os maiores interessados – pouco consultados, ainda que lhes falte um verdadeiro senso crítico e de análise político-social da MP, com impactos sérios em sua formação pessoal e intelectual.

Disciplinas como Artes, Filosofia e Sociologia têm a incumbência de engendrar no sujeito a consciência de sua presença no mundo; desvelar para ele o mundo ainda em construção e ajudá-lo a perceber este mundo em que ele vive e a ansiar pelo mundo no qual ele gostaria de conviver. Tais ciências não são apenas necessárias, são fundamentais, e, por isso, vitais. Não obrigatórias. Claro que um adolescente irá manifestar repulsa pelo “obrigatório”: “minha filha chegava da escola e me dizia: ‘eu não sei para que estudar filosofia’”, disse uma mãe num dos muitos comentários deixados nas redes sociais. Tem razão a filha. Ela não sabe para quê serve a filosofia. Talvez ainda não tenha tido a oportunidade de ouvir de seu professor, em sala de aula, ou de ter lido em um dos muitos manuais de filosofia que ela, a filosofia, “é a ciência pela qual e com a qual o mundo continua tal e qual”. Filosofia não serve para nada, e não deve servir mesmo. Ela não é utilitarista e nem está na ordem do dia. Ela é para o ócio, para a divagação, para a reflexão pura, sistemática e mais pormenorizada das coisas. Ela se pergunta por isso e por aquilo e não é a resposta que ela procura. Não lhe interessa a resposta. O importante, isso sim, é a pergunta.

A pergunta muda tudo; desloca o ângulo da visão, retira o sujeito e recoloca a “coisa”, a res, a hiperbólica do vivido no centro. A filosofia, como dizia Sócrates, o filósofo que não dava as respostas, mas ajudava seu interlocutor a pari-las: “uma vida que não é refletida, não merece ser vivida”. Portanto, como aquela jovem, recém saída da infância, poderá ter tamanha capacidade de argumentação se ela não se deu ao luxo do texto pelo texto, da palavra pela palavra, de perceber a inaptidão das coisas e de se deter no aprofundamento do mais radical e perscrutar a essência de tudo? Como poderá ajudá-la aquela mãe se ela, em seu tempo de escola, muito provavelmente, não teve a oportunidade de refletir, ouvir e debater tais coisas? Não poderá. Desse modo, a filosofia será, tão somente, um entrave em sua vida e em sua busca por “sucesso”, dinheiro e autorrealização.

A sociologia, por sua vez, como as demais outras artes, cumpre com esta grave missão: a de olhar e ver. Nenhuma outra ciência, nem mesmo as chamadas “exatas”, poderá dar ao homem esta capacidade supra-humana: a de enxergar para além do visível. Investigar os conceitos, os acontecimentos, ler por entre as linhas, pesquisar, diagnosticar e esquadrinhar as ações e os fatos sociais. Ver o homem pelo homem e buscá-lo no além-homem. Interrogar-se se o homem é resultado do meio, ou se é tábula rasa; bom ou mal, radicalmente e por natureza. Por que age desta e não de outra forma e para que servem os governos, como eles nasceram, e de que modo influenciam e interferem no viver humano e na coletividade. Que peso tem a política na vida do cidadão e em que medida o homem é verdadeiramente livre. Por que somos tão arraigados em conceitos e definições e tão díspares de outros povos, que pensam e agem, em determinadas situações, tão diferentes de nós. E as clássicas: Por que existimos? De onde viemos e para onde iremos? Por que a violência, a corrupção, o trabalho, as desigualdades sociais, o poder – o que é o poder? – e para onde queremos seguir, como nação, como povo, como espécie? Quem, enfim, nos fará ver para além dos “óculos míopes” que temos?

É lastimável pensar que tudo isso, a provocação que tais disciplinas geram em nós, não poderá ou não será mais essencial em nossas salas de aula. Que nossos jovens e crianças serão privados do direito sagrado de ouvir e ler os clássicos – aquilo que nos molda ainda hoje e nos faz reconhecer o que somos -. Sem as artes e seus artistas, sem os movimentos, seus precursores e maiores incentivadores, sem os sociólogos, os filósofos, os literatas e os poetas; sem os mestres de ontem e de hoje, sem o facilitador em sala de aula, sem o homem e a mulher da palavra, o rapsodo moderno, não teremos mais a crítica explícita, a métrica perfeita e a rima parnasiana. O soneto já não será mais evocado e os mitos, construtores de mundos, ignorados e relegados ao esquecimento. Nunca mais Durkheim, Weber, Marx, Nietzsche, Platão, Sócrates, Descartes, Maslow, Freud, Heráclito, Bauman, Tostói, Dostoievski, Guimaraes Rosa, Lispector, Millôr Fernandes, Meireles, Quintana. Adeus impressionismo, cubismo, Monet, Picasso, Van Gogh, Gauguin, Bach, Mozart, Tchaikovsky, Agostinho, Husserl, Espinosa. Voltaire, Diderot, Rousseau, Montesquieu, Maquiavel, escola de Frankfurt, e um sem fim de autores e mestres, pensadores e vanguardistas, filósofos e doutores em humanidade.

A ausência de todos esses e de um sem fim de outros produzirá jovens incultos, irrefletidos e incapazes de gerir suas demandas mais íntimas. Serão autômatos numa sociedade escravagista e utilitarista. Nossas escolas, lugares de saberes, produzirão técnicos e agentes [do e] para o trabalho, enquanto os “mais bem nascidos” serão preparados para os primeiros postos, os de chefia, de gestão e de autoridade. Nossos adolescentes, despreparados em humanidades, serão gestados para obedecer e produzir, enquanto outros, conscientizados e esclarecidos, ditarão as diretrizes a serem seguidas. A fome de conhecer, tão antiga e tão nova, não será, nem de longe, saciada. Morreremos, por fim, de inanição e de desnutrição, pois teremos apenas a técnica, o savoir-fare e não mais o savoir vivre. Bem disse Olga Benário na proximidade de sua morte assassínia: “Lutei pelo bom, pelo justo e pelo melhor do mundo”. Afinal, ou se luta por ele todos os dias, ou entrega os pontos de vez. Porém, vale ainda a pena lutar?

Triste época! Pois, um povo sem artes, sem filosofia e sem sociologia, sem o lúdico e o pensamento crítico e livre, já não é mais povo, é massa: uniforme, acrítica, embrutecida e facilmente manipulável. Já não luta; aceita, passiva e resignadamente o que lhe impõem. Porque massa se “marca, tange, fere, engorda e mata, mas com gente é diferente”. Uma sociedade assim, incapaz de se reconhecer como Ser do Ente, pois doente, atenderá unicamente a interesses mesquinhos e escusos.

Todavia, não obstante a tudo isso, o conhecimento segue com sua missão altaneira de produzir em nós a inquietude e a angústia costumeiras do vis-a-vis. Ainda que nessa sociedade, dita democrática, não haja mais espaço para a palavra parresiástica (Michel Foucault), a única capaz de nos libertar das amarras ao fundo da caverna existencial, é preciso ter a coragem de abrir bem os olhos para ver e contemplar a luz sem ocaso da verdade.

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Por, Pe. Claudemar Silva


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