O tema da redação deste ano, 2016, no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) foi: “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”. Para início de conversa: para quê serve a religião?
Essa pergunta é tão antiga quanto antiga é a sua função: religare. Ligar, sempre de novo, as pessoas, os mundos, e, sobretudo, o coração e a mente. Ligar e unir não quer dizer uniformizar. Quer dizer comunhão, respeito mútuo, tolerância. Infelizmente, tais verbos não são conjugados no Brasil. Há muito que em nosso país a religião tem servido para desunir, destruir e matar. Não é que tudo deva ter uma finalidade pragmática, mas religião é daquelas coisas [res] que precisam, necessariamente, servir para algo efetivamente nobre. Do contrário, não serve e, se não serve, atrapalha.
Desde os gregos antigos que se fala de uma tal “alma humana” ou Psychē. Platão falava da transmigração das almas. Viemos do mundo perfeito, ideal, e caímos aqui, na terra, solapados de tudo. Foi nossa queda. Desaprendemos uma série de coisas, inclusive sobre o local de onde viemos. É que no caminho, dizia o mito de Léthê, bebemos em demasia da água do seu rio. E nos esquecemos. Esquecemos, inclusive, o que define o ser humano. Fomos cindidos; uma coisa é a alma (nobre, valorosa, santa), outra coisa, bem diferente, é o corpo (cárcere, desprezível, pecaminoso). Ao longo da história da filosofia tentou-se resgatar essa nossa humanidade perdida.
Fomos feridos em nossa vaidade e em nosso orgulho. Atingidos no calcanhar, tal qual Aquiles, mancamos em nossa humanidade. Carecemos de algo. Buscamos em nós mesmos e é esse o nosso fim. Solitários, a exemplo de Narciso, afogamos em nossa própria miséria e em nossa própria loucura. Sem o outro, diferente de nós, estaremos fadados à implosão: “somos seres com o outro”, advertiu-nos Buber. Preferimos acreditar que o “outro é o nosso inferno” (Sartre). Pensar assim desafoga nossa consciência, já pouco esclarecida (Kant) e infimamente consciente. Deveríamos conscientizá-la (Husserl) até ela se dar conta de sua incapacidade de ser sozinha: “somos demasiadamente humanos” (Nietzsche). Sem o outro, sem este que me interpela e me retira de mim mesmo, não ec–xisto (Lévinas); não sou. Desapareço.
Enfim, sem o mínimo de alteridade, o outro será uma diferença absurda: terei que eliminá-lo de qualquer jeito e de qualquer modo. Suas ideias, seus valores e suas crenças não me interessarão. Será, tão somente, o meu opositor. Um inimigo a ser combatido. E, infelizmente, a religião vai no bojo desse pensamento hodierno. Em nome de uma fé excludente e de uma experiência idólatra de deus, o homem religioso avança contra os que pensam e agem diferente de suas crenças e de seus valores a fim de exterminá-los. “Deus não está morto e não pode ser desrespeitado”, acredita o crente. “Preciso defendê-lo desta geração adúltera e herética. Vou limpar o mundo da sujeira de Sodoma e Gomorra”, acreditam piamente os fundamentalistas religiosos. Os islâmicos, os judeus, os cristãos e, acredite, também os ateus: “os homens crentes são uma praga para a evolução e o progresso da humanidade. Vamos eliminá-los”. Também o ateísmo tem o seu deus, sua crença e sua fé.
Desse modo, sem negar a dimensão intrínseca do ser humano, a espiritual [e não podemos negá-la mesmo], agiganta-a, todavia, em detrimentos de outras dimensões. Esquece-se que o homem é também um ser social, político, cultural, afetivo, sexual e uma infinidade de outras dimensões. Reduzem-no a uma única: a da religiosidade. Todas as demais passam a ser vistas por essa única ótica: a do espiritual. Daí o apequenamento do ser humano. Afinal de contas, somos maiores do que tudo isso. Somos uma infinidade de mundos dentro de um único mundo: nosso cérebro. Uma mente afetada por patologias e ingerências sociais adoece todo o corpo. E como o corpo não sobrevive sem o espírito, todo o homem e o homem inteiro torna-se numa “chaga andante”. E, por onde passa, dissemina o seu vírus: nesse caso, o da intolerância religiosa.
A intolerância religiosa [a incapacidade de lidar com o outro que pensa e que age diferente de mim] deixou de ser apenas um discurso inflamado dos púlpitos. Ganhou as ruas, as manchetes de jornais, os canais de tv, a internet, as escolas e uma quantidade enorme de adeptos. E pior. Infinitamente pior: ganhou as câmaras municipais e estaduais, o congresso, o senado e pleiteiam o judiciário. Nada mais devastador do que isso: a prostituição entre política e religião. Em nome de uma pregação famigerada e insana, ousam defender deus dos pecadores. E pecadores aqui entendidos como aqueles que se desvirtuam apenas no campo sexual. Eles não percebem que corrupção passiva, lavagem de dinheiro, formação de quadrilhas, aliciamentos e envolvimentos com o narcotráfico, entre outros, são crimes hediondos e detestáveis.
Seus discursos inflamam jovens, homens, mulheres e crianças e despertam o ódio em um sem fim de pessoas. Aumenta-se a criminalidade, o homicídio, o suicídio, o feminicídio, a homofobia e a desagregação das famílias. O ensino livre e pluridisciplinar nas escolas fica seriamente comprometido bem como a capacidade de argumentação dos jovens, sobretudo daqueles que ficam à mercê de seus mentores e gurus religiosos. O que eles dizem torna-se “dogma de fé”. A chamada “laicidade do Estado” está comprometida até as bases. Aliás, deturpa-se o que significa isso. Pensam que “laicidade” é a exclusão da religião ou do seu discurso da ágora pública, enquanto ela significa justamente o contrário: a inclusão de todos os discursos, de modo respeitoso, democrático e com igual participação, sem o privilégio de um em detrimento de outros. Afinal, o homem além de político por natureza [Aristóteles] é também religioso e tudo o mais que pudermos pensar dele em matéria de construção humana, psíquica e social.
Por fim, a intolerância religiosa fere e mata cidadãos; homens e mulheres com direitos e deveres salvaguardados pela Constituição, carta magna de um povo. Logo, atinge toda a sociedade. Segundo dados do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), ligado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, conforme noticiou o jornal oglobo[1], recebeu em dois anos e meio quase mil denúncias de casos de intolerância religiosa. Os números constam de um relatório apresentado em audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Entre julho de 2012 e dezembro de 2014, foram registradas 948 queixas, 71% delas sobre intolerância contra religiões. É uma violência que deve ser combatida por todos: políticos, religiosos [sérios e honestos], meios de comunicação, empresários, formadores de opinião e pela sociedade em geral. A religião não pode perder o seu brio: ser agregadora, trazer o homem de volta. Há muito que estamos ausentes de nós, em busca de um oásis idílico e inalcançável.
A encruzilhada de Tebas não pode definir o nosso destino: o de furar os nossos olhos para não vermos o mal perpetrado. É preciso redescobrir o Oráculo de Delphos: “Homem, conheça-te a ti mesmo”. Não há vida fora deste planeta chamado “homem”. Excluí-lo de si mesmo, segregá-lo por causa da sua cor, da sua identidade cultural, do seu pertencimento social e da sua fé é estrangulá-lo até a morte. Roubar-lhe de sua liberdade de ser no seu processo de individuação caracteriza-se na pior das violências. É arrancar-lhe a máscara [persona] que ele identificou como possível de lhe encaixar bem. Quem não a tem? Quem ousaria dizer-lhe o contrário? Vamos continuar legislando sobre a vida alheia como se ela nos pertencesse de fato e de direito? Até quando a religião [a falsa religião e os falsos religiosos] terá a insanidade de manter as mãos sujas do sangue de inocentes que ela ajudou a assassinar?
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Por, Pe. Claudemar Silva
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[1] Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/rj-registra-mil-casos-de-intolerancia-religiosa-em-2-anos-e-meio.html