O cenário apresentado pelo evangelista Lucas (21,5-19) nesse trigésimo terceiro domingo do tempo comum foi assustador.
Todavia, ele não é algo para o futuro. Diz respeito aos primeiros anos do cristianismo, nos chamados eventos pós-pascais: perseguições, prisões e mortes. Diante do anúncio da Boa-Nova do Evangelho, os cristãos se viram assolados de todos os lados: pela religião oficial da época e pelo império que os perseguiam e tentavam, a todo custo, minar suas forças até poder extingui-los de vez.
As imagens trazidas pelo evangelista não deixam dúvida: é como se sobre os cristãos se abatessem os céus, a terra e o mar. Todas as forças estavam como que contrários ao anúncio que faziam. Eram hostilizados e postos à prova diariamente. Suas vidas corriam riscos e em muitos casos eram feitos prisioneiros denunciados pelos próprios familiares, parentes e amigos. Muitos dos mártires dos primeiros séculos foram entregues às autoridades políticas e religiosas por membros de suas próprias casas.
Nesse sentido, qual a atualidade da Palavra de Deus para os cristãos de hoje?
A atualidade está no fato de que o cenário de antes pouco mudou. Trazemos ainda as mesmas feições de perseguições, contrariedades, disputas, assassínios e indiferenças de outrora. Os cristãos atuais continuam incomodando e sendo motivo de escárnio para muitas instâncias de poder e de governabilidade. O anúncio do Evangelho, não poucas vezes, é considerado utópico, tal qual uma anedota infantil. Muitos, inclusive, consideraram [e consideram ainda] o cristianismo o “ópio do povo”, como se feito para amainar as consciências, tornando-as passivas diante das realidades da vida.
Ledo engano. O cristianismo nunca foi alienação nem tampouco neutralidade. Desde Cristo, o horizonte penúltimo dos cristãos [pois o horizonte último é sempre Deus: teo-lógico], a religião cristã sempre esteve na esteira dos grandes movimentos de libertação: do ser humano e da criação inteira. Muitos homens e mulheres, por causa de sua fé, colocaram-se no “pelotão de frente”, na vanguarda de uma sociedade eminentemente humana, digna, justa e valorosa. Não se admitia nenhuma forma de incoerência e injustiça no seio cristão. Fé e ética caminhavam juntas, de mãos dadas: “Não havia necessitados entre eles” (At 4,34). Todos se importavam com todos e juntos buscam superar as dificuldades encontradas. As pessoas eram constantemente convidadas a serem protagonistas da sua própria salvação: “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti, porque todos nós, tu e eu, temos sempre a possibilidade – a triste desventura – de levantar-nos contra Deus, de rejeitá-lo – talvez com a nossa conduta – ou de exclamar: Não queremos que ele reine sobre nós” (Santo Agostinho). Os cristãos se sentiam, efetivamente, parceiros de Deus.
Em nossa sociedade, porém, os cristãos se dispersaram. Há quem se distraia com as calamidades do tempo e a revolta da natureza. Os terremotos, os conflitos entre os povos e as notícias de horror e de morte provocam neles um profundo mal estar: “até quando Deus tardará?”. A demora de Deus, no entanto, não é conivência com o mal perpetrado no mundo. As maldades, a violência, os genocídios, as ditaduras, a fome, a miséria e as doenças em nada agradam ao seu coração de Pai. São ações e desventuras humanas que tocam profundamente o coração de Deus. Ele, no entanto, faz-se paciente, à espera da conversão e da mudança de atitude do ser humano. Deus continua a acreditar em nós e em nossa capacidade de superação. Em nossa resiliência.
São os homens, e não os anjos, os responsáveis por esta terra. Cabe aos cristãos, por essa razão, dar um testemunho fidedigno de compromisso e de responsabilidade para com a criação inteira. Não se pode responsabilizar Deus pelas nossas incoerências e o nosso abatimento físico e espiritual diante da dor e do sofrimento do mundo. Somos nós os atores de um mundo novo, mais fraterno e menos injusto. Sofremos de males pelos quais nutrimos, muitas vezes, profunda estima. Reivindicamos o bizarro, o trágico e horror cotidianamente. O mercado capitalizou esse nosso desejo insano e o transformou em espetáculo. Todos os dias nos chegam, a conta gotas, manchetes do “inferno”.
Nós, por outro lado, preferimos não nos comprometer. Afugentamos de nós a indignação, justa e sadia, e preferimos assistir ao espetáculo de casa, como se nada do que ocorre da porta pra fora nos dissesse respeito. Estamos todos envoltos da mesma apatia e de igual indiferença. Não queremos trabalhar pela construção do mundo que, a bem da verdade, tanto ele quanto o homem continuam incompletos; imperfeitos. Nutrimos um certo asco de tudo: “quem não quer trabalhar também não deve comer” (2Tss 3, 10), denunciou o apóstolo Paulo. Preferimos, muitas vezes, vagabundear pelas estradas, sem destino, sem horizonte certo nem definido. Isolamo-nos do mundo e queremos vida além desse planeta.
Os nossos dias estão plenos de apreensão, tais quais os dias dos primeiros séculos da era cristã. Há cristãos perseguidos diuturnamente por causa de sua fé. São retirados de seus países à força e deixados à própria sorte. Homens, mulheres, crianças, idosos e jovens sem pátria, nem solo, sem esperança e sem consolo. São despejados em barcos que singram mares revoltos. Naufragam e morrem sem o mínimo de dignidade. São enterrados como apátridas. Nossa indiferença e nossa recusa em nos levantar e gritar nossa dor e nosso escândalo geram vítimas mundo afora. Nosso compromisso com os partidos políticos, mais do que com o Evangelho, nos dividem como se uma espada fina e afiada nos cortasse até a alma. Nossa pouca instrução religiosa, espiritual, mística e política continuam gerando analfabetos de todas as áreas e ciências. Entendemos pouco de nada, e nada de tudo. Somos manipulados pela mídia, pelos sistemas de governo e pelas instâncias de forças presentes no mundo. Carecemos de salvação.
Engana-se, no entanto, quem acredita que um outro ser humano é capaz de nos salvar. Morrerá à mingua o cristão que não souber ou não quiser confiar no único capaz de compreendê-lo até à medula: “sobre vós que temeis o meu nome, levantar-se-á o sol de justiça que traz a salvação em seus raios. Saireis e saltareis, livres como os bezerros ao saírem do estábulo” (Ml 3, 20). Somente Deus, o justo juiz, o Senhor da História, poderá nos recolocar no trilho da história. Somente Ele, e mais ninguém, poderá nos salvar das piores atrocidades e dos piores horrores ainda existentes em nosso mundo, e nos proteger de nossos maiores inimigos, inclusive de nós mesmos. Só Deus, em sua misericórdia infinita e sua santidade inalterável, é capaz de nos alavancar do fosso em que nos encontramos.
Nossa história recente clama por justiça. No ano passado [2015], só no Brasil, a cada nove minutos uma pessoa era assassinada. No fim, a conta superou a guerra na Síria. Estamos enfrentando guerras civis incontáveis. As maiores vítimas continuam sendo as mulheres e os jovens. As atrocidades são diárias e muito próximas de nós. O mundo sofre não apenas terremotos, guerras, conflitos e violências de toda ordem. Sofremos de uma profunda indiferença a tudo e a todos. Não nos importamos com a sorte dos nossos vizinhos, quer sejam eles da casa ao lado, do bairro ou do país vizinho. Importamo-nos pouco com os revezes da história, desde que não nos atinja frontalmente. Reivindicamos uma sorte que não estamos dispostos a conceder a outrem. E o Cristo, no entanto, nos adverte: “cuidado. Muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu’; e ainda: ‘O tempo está próximo’. Não sigais após eles”. Nós, no entanto, preferimos nos sentar e ver no que vai dar, como se pudéssemos apenas contemplar o espetáculo, sem estarmos diretamente ligados a ele.
Há pouco vimos, estarrecidos, uma nação cujos recursos superam enormemente os nossos, com tantas faculdades, padrões de ensino e cultura inigualáveis, com tecnologia de ponta e com tanto poder bélico, inclusive, eleger um homem cujo discurso e propostas pretendem agigantar ainda mais os melindres do mundo: construir muros e barricadas para dividir e impedir o acesso alheio. O tom agressivo, desagregador, sexista e discriminatório de Trump somou-se ao de uma parte significativa daquela sociedade que há muito se sente aviltada em sua honra e em seus direitos civis e trabalhistas. Para proteger o capital e a força de trabalho, e não ser obrigado a lidar com o diferente, com o imigrante, preferiram o discurso de ódio e de medo. O mundo se vê, mais uma vez, na contramão da história que pede de nós uma compreensibidade e um respeito mútuo pela casa comum.
O cristão atual, tal qual o cristão de ontem, da época de Jesus, se vê inquerido a lutar e a testemunhar com sua própria vida os critérios claros e objetivos do Evangelho. “É pela vossa constância que alcançareis a vitória”, garantiu-nos Jesus. Ele, o Emanuel, Deus conosco, nos ensina a não nos acovardarmos diante das pressões que sofremos. E não são poucas. Muitos nos chamarão de “comunistas”, de “vermelhos”, desse ou daquele partido. Sordidamente, procurarão nos associar a esse ou àquele discurso político e econômico para neutralizar nossa ação ou torná-la desacreditável. Também fizeram isso com Jesus. Acusaram-no de ser herege, de provocar insurreições contra o poder reinante, de apóstata e ser contrário à lei da religião e dos bons costumes. Chamaram-no de beberrão e de glutão (Mt 11,19), amigo dos pecadores públicos e impuro por conviver com os impuros de seu tempo. O que não falarão de nós? De quantas coisas ainda hão de nos acusar? É preciso ter a coragem dos verdadeiros crentes, dos autênticos cristãos que sabem, por convicção e por graça insuspeita de Deus: “não se perderá um só fio de cabelo da vossa cabeça”. Deus protege os seus, aqueles que o amam.
Que ninguém, portanto, ouse roubar de nós a fé a esperança que temos. Que nenhuma força arranque do nosso peito a certeza de que o Senhor, o vencedor de todos os séculos e de todos os mundos, virá com certeza julgar a terra inteira. Julgará o universo com justiça e as nações com equidade (Sl 97/98). Maranathá. Vem, Senhor Jesus.
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