Com a celebração da quarta-feira de cinzas, a mãe Igreja convoca seus filhos, nascidos na pia batismal e alimentados por ela por meio da Palavra e da Eucaristia, à conversão.
Nos primeiros séculos apenas cumpriam esse rito, da imposição das cinzas, os grupos de penitentes – pecadores públicos – que queriam receber o perdão da comunidade cristã no final da Quaresma, na Quinta-feira Santa, às portas da Páscoa. Eles trajavam vestes penitenciais, impõem cinzas na própria cabeça, e dessa forma apresentavam-se diante da comunidade, expressando a sua vontade de conversão. A partir do século XI, quando desaparece o grupo de penitentes como instituição, o Papa Urbano II estendeu esse rito a todos os cristãos. As cinzas, símbolo da morte e do nada da criatura em relação a seu Criador, são obtidas por meio da queima dos ramos de palmeiras e de oliveiras que foram abençoados no ano anterior, na celebração do Domingo de Ramos. Para assegurar uma expressão comunitária à penitência, a Igreja orienta as práticas concretas: da oração, da esmola e do jejum (abstinência de carne). Sobretudo na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira da paixão, pede-se a observância do jejum. É salutar, todavia, que se resguardem as demais quartas e sextas-feiras, bem como a abstinência de outros alimentos que caracterizem verdadeira renúncia para o penitente.
O Tempo Litúrgico da Quaresma é, desse modo, o período em que a Igreja rememora o caminho espiritual de Jesus, desde sua tomada de consciência da missão que o Pai lhe confiara quando o Espírito o conduz ao deserto, onde por 40 dias Ele foi tentado por satanás, antigo inimigo de Deus e da criação inteira, passando por sua vida pública, a escolha dos doze, a instituição do Sacerdócio ministerial, da Eucaristia, do Sacramento da Reconciliação até sua paixão, morte e ressurreição. A Páscoa, cume da caminhada quaresmal, é a maior festa cristã. Nela, o cristão alimenta sua esperança na vida nova inaugurada no Cristo, cuja morte foi vencida por sua entrega voluntária em total obediência ao Pai e em coerência com o anúncio do Reino de Deus (cf. I Cor 15, 14).
A Quaresma é um tempo forte de chamada à conversão. Ninguém está eximido desse processo espiritual. Do papa até o recém-nascido que foi batizado hoje, todos, indistintamente, precisamos nos converter. Na Bíblia, conversão é chamada de metanoia, isto é, uma guinada no caminho, uma mudança radical no percurso que se fazia. Uma mudança profunda na rota a fim de abandonar os atalhos e preferir a estrada que leva ao bom caminho, aquele que reconduz à estrada certa (cf. Sl 1). As Sagradas Escrituras estão permeadas desse convite: convertei-vos! Os Atos dos Apóstolos, que narra a caminhada dos primeiros cristãos, depois da Ascenção de Jesus aos céus, orienta: “Arrependei-vos e convertei-vos para que assim sejam apagados os vossos pecados, de modo que da presença do Senhor venham tempos de refrigério, e Ele envie o Cristo, que já vos foi previamente designado: Jesus” (At 3, 19-20).
De fato, a comunidade discipular só poderá ser fiel ao seu Cristo se se deixar convencer por sua vida, suas palavras e pregações. Na esteira de João Batista que anunciava um batismo de conversão para o perdão dos pecados (cf. Mc 1,7), Jesus anuncia para além do perdão dos pecados, a proximidade do Reino de Deus: “Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus” (Mt 4, 17). O grande anúncio de Jesus foi precisamente este: a chegada do tão esperado reinado de Deus: de justiça, equidade, direito, respeito, vida nova e digna, e, com Ele, a manifestação do Messias do Senhor, aquele que descortinaria os valores desse reino. Logo, Jesus fez conhecer a face de um Deus que não era distante do ser humano, nas abóbodas dos céus, mas o arrancou de lá para pô-lo junto do ser humano, dentro de cada homem e de cada mulher, ao ponto de fazê-los chamar de “Pai”. Esse Pai, longe de ser um carrasco, castigador, era alguém com entranhas de misericórdia, sempre pronto para perdoar, com amor desmedido e extremamente paciente com os faltosos. Esse Deus-Pai, ao invés de julgar e condenar, estendia ao homem seu “braço forte e poderoso” a fim de arrancar-lhe das amarras do pecado e da morte, e retirar dele o jugo que lhe pesava aos ombros: E acontecerá, naquele dia, que a sua carga será tirada do teu ombro, e o seu jugo do teu pescoço; e o jugo será despedaçado por causa da unção” (Is 10, 27).
Por essa razão, a caminhada cristã se configurou desde sempre, como a do povo que caminha na direção do abraço desse Pai, terno e cheio de misericórdia (cf. Lc 15, 11-32). Como outrora o povo de Israel, que durante 400 anos foi mantido cativo pelo faraó, o cristão pode-se deixar aprisionar por uma vida de erros, de equívocos e de incoerências diante desse Deus que continua querendo nos libertar: “Eu vi, eu vi a aflição de meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa de seus opressores. Sim, eu conheço seus sofrimentos” (Ex 3, 7). Ao longo de 40 anos, o povo de Deus caminhou pelo deserto, guiado por Moisés e seu irmão Aarão. Para a posse na terra prometida, Deus contou com Josué, e ao longo da história do povo judeu, enviou-lhe juízes, profetas e reis. Mas, chegada a plenitude dos tempos, Deus enviou seu próprio filho, Jesus, o Cristo, cuja missão era a de nos revelar explicitamente sua face divina.
Em Jesus, Deus ganhou contornos humanos: adquiriu carne, sangue, ossos, sentimentos e emoções tais como os nossos. Em nada, Ele é diferente de nós, exceto no pecado (haja vista que o pecado não é humano, mas uma contravenção). Até mesmo sua divindade, Ele a tornou nossa herança: “Vede que imenso amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos tratados como filhos de Deus; e, em realidade, somos filhos de Deus! Por esse motivo, o mundo não nos conhece, porquanto não conheceu a Ele mesmo” (I Jo 3, 1). Jesus abriu-nos em definitivo o reino dos céus. Ao adentrá-lo, não o faremos como estranhos ou persona non grata. Pelo contrário. Haveremos de adentrá-lo como herdeiros, que tomarão posse daquilo que lhes pertence, por lei e por direito.
Todavia, ninguém poderá gozar desse convívio com o Santo dos santos, o Senhor dos senhores, se durante esta vida não se emendar, não se corrigir, não abandonar as práticas errôneas e os maus desejos do coração. Se não formos firmes com os nossos desejos e não soubermos orientar bem as nossas vontades. Afinal, o Espírito é forte e está pronto, mas a carne continua sendo fraca, miserável, aquém do desejo e da altura do Espírito (cf. Mt 26, 41). A carne, símbolo das paixões desordenadas, é oposição aos anseios do Espírito – vontade consciente e reorientada para o bom proposito – que busca elevar-se, ascender às alturas onde poderá seguir seu mais delicioso voo: na direção do amado de sua alma: Deus.
Portanto, que o pecador se arrependa com sinceridade e abandone o seu pecado. Que o criminoso repudie suas práticas nefastas e perniciosas. Que o ímpio reconsidere o bom caminho e que o sanguinário lave o sangue de suas mãos e chore amargamente o seu crime. Que o mentiroso morda a língua e arranque do seu vocabulário a palavra torpe e a maledicência contra o seu irmão. Que o caluniador reverta o mal feito a outrem, e passe a dizer apenas a verdade e se comprometa com a boa fama do seu semelhante. Que o corrupto se conscientize da gravidade do seu crime e do seu pecado, que gera morte e infortúnios para um sem fim de vidas. Que devolva, portanto, ao bem público o que ele ousou tomar para si, como sendo seu particular. Que o salteador não engane nem assuma para si o que não lhe pertence. Que o assaltante não se deixe levar pelo espírito de violência que o faz lançar-se diabólico sobre o indefeso e o desprotegido. Ao violento, de todo tipo e de toda ordem, Deus pedirá contas de sua ira. O sangue dos inocentes clama, da terra, pela Justiça do Senhor. A ninguém é permitido interromper a existência de outrem. Aos pecadores contumazes, já frívolos, tíbios e indiferentes, recorram à complacência divina, ainda que nada sintam, e supliquem pela eficácia da Graça que tudo adentra e renova.
A Quaresma é, sim, este tempo de abandonar práticas des-humanas e re-aprender o caminho da casa comum: “Ide! Lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas muitas e más obras! Cessai imediatamente de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Ainda que os vossos pecados sejam como o escarlate, eles se tornarão alvos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão brancos como a lã” (Is 1, 16-18). Eis o convite amoroso do Senhor neste tempo. O pecado será sempre um empecilho, mas nunca um obstáculo para a ação de Deus. Consciente do erro, suplicado o perdão, Deus é forte o bastante para perdoar e dar uma nova chance a quem errou e deseja reconciliar-se. Se fechada as portas da esperança, Deus abre uma fresta, ainda que mínima, e por ali sua benevolência poderá adentrar o interior do homem. Ao homem, Deus pede apenas uma coisa: “Eu repreendo e corrijo a todos quanto amo: sê, pois, diligente e arrepende-te. Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3, 19-20).
Findado o percurso, se vivido com diligência, reverência e atenção, o cristão poderá, ao fim do período quaresmal, entoar seu louvor de gratidão e reconhecimento: “Senhor meu Deus, clamei a ti, e tu me saraste. Senhor, fizeste subir a minha alma da sepultura; conservaste-me a vida para que não descesse ao abismo” (Sl 30, 2-3). Tal gratidão será fruto de uma outra oração, sincera, honesta, que suplica:
“Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade. E conforme a imensidade de vossa misericórdia, apagai a minha iniquidade. Lavai-me totalmente de minha falta, e purificai-me de meu pecado. Eu reconheço a minha iniquidade, diante de mim está sempre o meu pecado. Só contra vós pequei, o que é mau fiz diante de vós. Vossa sentença assim se manifesta justa, e reto o vosso julgamento. Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado. Não obstante, amais a sinceridade de coração. Infundi-me, pois, a sabedoria no mais íntimo de mim. Aspergi-me com um ramo de hissope e ficarei puro. Lavai-me e me tornarei mais branco do que a neve. Fazei-me ouvir uma palavra de gozo e de alegria, para que exultem os ossos que triturastes. Dos meus pecados desviai os olhos, e minhas culpas todas apagai. Ó meu Deus, criai em mim um coração puro, e renovai-me o espírito de firmeza. De vossa face não me rejeiteis, e nem me priveis de vosso santo Espírito. Restituí-me a alegria da salvação, e sustentai-me com uma vontade generosa. Então aos maus ensinarei vossos caminhos, e voltarão a vós os pecadores. Deus, ó Deus, meu salvador, livrai-me da pena desse sangue derramado, e a vossa misericórdia a minha língua exaltará. Senhor, abri meus lábios, a fim de que minha boca anuncie vossos louvores. Vós não vos aplacais com sacrifícios rituais; e se eu vos ofertasse um sacrifício, não o aceitaríeis. Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó Deus, que não haveis de desprezar. Senhor, pela vossa bondade, tratai Sião com benevolência, reconstruí os muros de Jerusalém. Então aceitareis os sacrifícios prescritos, as oferendas e os holocaustos; e sobre vosso altar vítimas vos serão oferecidas” (Sl 50, 1-19).
Boa caminhada quaresmal!
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Por, Pe. Claudemar Silva
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