A humanidade sempre cortejou com a execração pública. Desde tempos antigos, temos prazer na “desgraça” alheia. Ela, de algum modo, suaviza o tédio e o enfastio que a nossa própria vida se tornou muitas vezes.
Ainda hoje, motivados pela opinião pública e pela mídia, elegemos os “monstros e as bruxas” de nossa época. Não suportamos a ideia de que eles possam se arrepender dos crimes que cometeram e queiram se regenerar. Não lhes damos a chance de recomeçar.
Sempre me impressionou o modo como lidamos com os “criminosos públicos” – sem falar que, volta e meia, a literatura policial traz relatos de linchamentos públicos. Um escândalo para a nossa inteligência tão aclarada e para nossa espécie dita racional -. Sem desmerecer a gravidade dos seus crimes, não seria igualmente justo reconhecer que eles também têm o direito a uma nova chance? Entre esses estão alguns de nossa história recente: Guilherme de Pádua, Suzane Richthofen, jogador Bruno e o casal Nardone, entre tantos outros.
Foram hediondos os seus crimes? Foram. Deveriam pagar por eles? Sim. Mas devem ser considerados culpados e criminosos eternamente? Não. Em algum momento cessarão suas penas. E, se arrependidos, merecem o perdão pelos seus crimes. Do contrário, como voltarão a viver dignamente? Não terão eles direito à vida, à liberdade e à realização de seus sonhos? Muitos me dirão – ou pensarão: “é por que não foi com um de sua família?”
Eu, sinceramente, compreendo a dor, a tristeza e a revolta dos familiares, parentes e amigos. Mas sei, pela fé, que a espiral da violência não nos poderá salvar do horror da morte nem tampouco nos trazer de volta os entes-queridos falecidos. O “dente por dente e o olho por olho” é uma proposta insana e desumana e não contempla o arrependimento e o sincero desejo de mudança que o “criminoso” possa nutrir.
Porém, sei ainda que compreender tudo isso não é fácil nem simples. Exige conversão à Misericórdia. Pois, sem esse movimento do coração iremos encontrar justificativas justas e plausíveis para manter todos os criminosos presos e acorrentados até o fim de seus dias; isso, se não lhes desejarmos a pena de morte: lenta e dolorosa.
O “Evangelho da Misericórdia”, por sua vez, é porta aberta para o perdão de Deus e convite para que vivamos a lógica da Reconciliação entre nós. Não há pecado que não Deus não perdoe!
Em Lucas, o “Evangelho da Misericórdia”, há um relato comovente: o da pecadora pública (Lc 7, 36-48) que lava os pés de Jesus com suas lágrimas e unge a cabeça dEle com um perfume caríssimo. Nesse recorte de cena, a personagem principal é a mulher. Ela está em relevo na cena. É dela que todos falam e, por isso, os olhares se voltam para ela: uns, para julgar e condenar. E um, apenas, para reconhecer a qualidade do seu amor: “Por isso te digo: seus numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela tem demonstrado muito amor. Mas ao que pouco se perdoa, pouco ama”. E disse a ela: “Perdoados te são os pecados” (vv. 47-48).
Para os homens presentes à cena, muitos deles comparsas dela no pecado, aquela mulher não tinha salvação. Uma vez pecadora, pecadora até morrer. Além do mais, a definição que eles tinham de profeta e de homem de Deus destoava enormemente daquela imagem apregoada por Jesus: “Se este homem fosse profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que o toca, pois é pecadora” (v. 39), pensou o anfitrião a respeito de Jesus.
Para aquele fariseu, um mestre não deveria se deixar tocar jamais por uma pecadora pública. Ao lavar os pés de Jesus e ungir sua cabeça, aquela mulher tornava-o impuro e inapto perante a Lei Mosaica. Mas Jesus não estava preocupado em cumprir a letra da Lei, senão de descobrir o Espírito que há permeava, afinal, nem tudo o que é legal é ético e moral e tampouco justificável para a fé.
Todavia, a dinâmica ali era outra. Ao invés de a pecadora contaminar Jesus, por que arrependida e amando-o sinceramente, era Ele quem a tornava justa, digna e purificada de seus pecados. Mas isso não podiam enxergar os fariseus, cujos olhos estavam habituados ao mal e à maldade. Eles enxergavam tão somente o que o seus preconceitos e discriminação arraigados eram capazes de assegurar como certos. Se, de fato, ela tinha muitos pecados, agora era a mais perdoada de todos. Também ela tinha direito de tocar a Salvação trazida por Deus. Todos, enfim, poderiam ser salvos; aderir à salvação de Deus. E isso deveria ser motivo de alegria para a religião e os devotos da fé.
Pois a Lei, lembra-nos Paulo (Gl 2,16.19-21), não justifica ninguém. Ela pode, tão somente, nortear a vida de alguém, mas jamais lhe dará a convicção do coração. A convicção, quem dá, é a fé. Foi o baluarte da fé que fez com que Paulo saísse da escravidão da Lei para a Liberdade da Fé: deixando de perseguir os judeu-cristãos, pensando estar agradando a Deus, passou a proclamar o Evangelho do Cristo, de quem se tornou apóstolo fiel até à configuração da própria vida: “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (vv. 20).
Até mesmo o grande rei Davi, o filho de Salomão, e construtor do Templo de Jerusalém cometeu uma série de crimes: desprezou o Senhor, fazendo o que era mau aos olhos dEle, mandou matar o comandante Urias à espada para tomar para si a esposa dele, além de uma série de outros crimes (2 Sm 12,7-10.13). Mas, por que se arrependeu do fundo do coração, Deus o perdoou e fez dele um grande rei e de cuja linhagem proveio o Messias esperado.
E a literatura sapiencial, por sua vez, reconhecendo a grandiloquência do perdão de Deus, nos propõe a confissão do próprio pecado: “Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me completamente da minha iniquidade, e purifica-me do meu pecado. Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51,1-3”, e reconhece o perdão concedido: “eu confessei afinal o meu pecado, e perdoaste, Senhor, minha falta” (Sl 32).
Afinal, Deus não nos acusa indefinidamente nem está sempre a contabilizar os nossos crimes. Aliás, Ele nem nos acusa. Ele não tem essa função. Não quis tê-la. Satanás é quem nos acusa dia e noite (cf. Ap 12,10). Deus não fica rememorando nossos pecados, como que num esforço descomunal para nos manter aprisionados e subjugados por eles. De nossos pecados, Deus é um “desmemoriado”. Ele, ao contrário, nos concede o salvo conduto; alforria-nos de vez. Se arrependidos de todo o coração, não haverá crime nem pecado que Ele não possa ou não queira nos perdoar.
Deus acredita de verdade no retorno do homem – de todo homem – ao bom caminho. Não nos deveria assustar se, ao chegarmos à morada eterna, constatarmos que entraram na paz do Cristo os mais enxovalhados e “endemoniados” da história. Afinal de contas, a Misericórdia do Senhor é sem fim, é eterna e é larga como os céus e mais vasta do que os mares e os oceanos mais longínquos. Ela se estende de geração em geração sobre todos aqueles que se abrem à Sua graça e desejam recebê-la (cf. Sl 130).
Estamos no Ano Santo da Misericórdia (2015-2016). Portanto: ousaremos pedir-Lhe mesmo que nos faça misericordiosos como Ele?
__________________
Por, Pe. Claudemar Silva
www.padreclaudemarsilva.com
Fanpage: Pe. Claudemar Silva